OPINIÃO
A conjuntura política e econômica, na qual se insere nosso país atualmente, tem nos deixado em alerta e preocupados, dado a uma sequência de fatos ocorridos e que colocam o brasileiro à sombra da informação. Lembrar sempre que a desinformação leva o indivíduo à alienação. Os fatos são, no mínimo estranhos, pelo menos nesse período em que a república está sob a égide da democracia, pós-ditadura militar. As instituições criadas para dar garantia ao Estado Democrático de Direito, são cada vez mais “apedrejadas” por uma parcela da sociedade que ao invés de diretos querem privilégios. A forma como se tem orquestrado e as narrativas utilizadas nos ataques às instituições, tem conduzido milhões de brasileiros a situações vexatórias, uma vez que não sabem a quem seguir. Não se sabe mais o que é verdade ou mentira.
Entre os acontecimentos recentes que merecem destaque, estão aqueles que poderíamos classificar como fanatismo e intolerância. Por isso, de inicio é importante definirmos o que são na realidade a intolerância e o fanatismo e, a partir de que momento esses comportamentos humanos se locupletam. Conforme o Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis, o fanatismo corresponde ao “excessivo zelo religioso que, às vezes, beira a obsessão e pode resultar em atitudes extremistas de intolerância; Adesão cega a uma doutrina ou sistema; faccionismo, partidarismo; Dedicação excessiva a algo ou a alguém; paixão”. No mesmo dicionário, Intolerância é a “Intransigência contra pessoas que têm opiniões, atitudes, ideologia, crenças religiosas etc, diferentes da maioria”. Uma vez definidos os termos, passemos então a buscar entender certos comportamentos inerentes aos mesmos. É possível perceber que há algo de comum nos significados. O fanático e o intolerante ficam impossibilitados de ouvir argumentos opostos aos seus. Não há diálogo com quem não coadune com suas ideias. É um ponto final no diálogo.
O propósito dessa discussão é tentar compreender alguns acontecimentos que marcaram, mancharam e envergonharam o Brasil nos últimos dias. O que há de comum nesses acontecimentos? Existiria alguma relação com o momento político no qual o país está inserido e vivencia? Haveria alguma ordem ou endosso direto ou indireto por trás de tais comportamentos? Vamos citá-los então, e em seguida, tentaremos buscar as respostas para os questionamentos propostos.
Comecemos com a morte de Genivaldo de Jesus Santos. Ele foi morto por policiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O caso aconteceu no município de Umbaúba, litoral sul de Sergipe. Genivaldo, negro de 38 anos, morreu asfixiado após ser parado em uma blitz na BR 101, por não usar capacete. Os policiais usaram o porta malas da viatura como câmara de gás. Antes de ser morto, ele foi agredido, e toda ação truculenta foi filmada por moradores que assistiram as cenas de tortura. Alheio ao sofrimento do outro, circulou nas redes sociais um vídeo em que um agente da PRF descreve aos alunos a prática de uma tortura durante uma aula para concurseiros de carreiras policiais. Nas imagens, o agente conta como teria colocado um preso em uma viatura e o deixado “mansinho” com uma rajada de spray de pimenta, fechando o compartimento em seguida. Essas atitudes desumanas com o próximo se tornaram rotineiras em nosso país. Há um fundamentalismo misturado com ódio, nunca antes visto por aqui.
O mundo ficou chocado com o caso envolvendo o indigenista e defensor dos povos originários da Amazônia, Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips. O que ocorreu com eles, se enquadra muito bem nessa onda de violência e intolerância que invade o Brasil. Os dois foram cruelmente assassinados na região do Javari[1]. Conforme o Portal G1[2], desaparecidos desde o dia 05 de junho de 2022, os restos mortais dos dois foram encontrados somente no dia 15 de junho, esquartejados e enterrados. A motivação do crime ainda é incerta, mas a polícia apura se há relação com a atividade de pesca ilegal e tráfico de drogas na região. Aqui cabe um comentário importante e pertinente. Nos três últimos anos, a região amazônica virou ‘terra de ninguém’ (grifo meu). De acordo com a ONG internacional Human Rights Watch (HRW), em sua análise anual sobre a situação dos direitos humanos em mais de 100 países, publicada em janeiro de 2020, as políticas ambientais do governo federal enfraqueceram o combate a atividades ilegais na Amazônia, reduziram o orçamento para fiscalização, limitaram a ação de servidores públicos e dificultaram que o país faça prevalecer a força da lei. O indigenista Bruno Pereira, apontado como um defensor dos povos indígenas e atuante na fiscalização de invasores, como garimpeiros, pescadores e madeireiros, foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Pouco Contato, da Fundação Nacional do Índio (Funai), em outubro de 2019. Mesmo exonerado, não se afastou da região, continuou como consultor da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).
Um terceiro fato que também merece ser relatado foi o ataque executado por um agropecuarista com uso de um drone durante ato do pré-candidato a presidente da república do Partido dos Trabalhadores, no dia 15 de junho, em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Conforme apurou o Portal IG[3], o acusado responde a 21 processos na Justiça. Entre os dolos imputados ao acusado estão crimes contra o patrimônio e roubo majorado, que pode ser roubo ou extorsão, lavagem de dinheiro, porte ilegal de arma de fogo, estelionato, falsidade ideológica, entre outros. “O drone utilizado, lançou um líquido que seria veneno para matar moscas sobre militantes que aguardavam o início do ato. O produto é utilizado no meio rural em estábulos. Atingidos afirmaram que o líquido tinha cheiro de fezes e urina”(Valor Econômico/2022)[4]. A ação criminosa tem motivação política, visto que o acusado se declara apoiador das políticas do atual chefe do executivo brasileiro.
A sequência de intolerância e fanatismo não para. No último dia 7 do mês em curso, o juiz que mandou prender o Ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro – acusado de crimes de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência–, foi atacado, enquanto se deslocava em Brasília. O carro do juiz foi atingido por um artefato contendo terra, ovos e estrume. Os autores do ataque não foram identificados. Porém, o juiz vinha recebendo ameaças em suas redes sociais por ter determinado a Operação “Acesso pago”, contra o gabinete paralelo do Ministério da Educação (MEC), caso revelado pelo Estadão[5]. Podem até parecer coincidências tais atos, porém tudo se encaminha para ter relações com o momento político vivido pelo país.
Para finalizar, cito os episódios da Cinelândia, Foz do Iguaçu e São João Meriti. Na Cinelândia, cidade do Rio de Janeiro, o fato ocorrido não é menos grave que os fatos relatados até aqui. Na última quinta-feira (07/07), conforme apurou o Portal G1[6], no mesmo dia em que o juiz sofreu os ataques, um homem de 55 anos, jogou uma garrafa plástica (uma espécie de bomba caseira) com um líquido mal cheiroso durante um ato político do Partido dos Trabalhadores. Houve confusão, mas ninguém ficou ferido. O acusado foi preso, visto se enquadrar no crime previsto no Artigo 251 do Código Penal que tem a seguinte redação: “expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos”. Em caso de condenação, a pena prevista é de três a seis anos de prisão, além de multa.
Não se respeita mais as opiniões contrárias. Adversários são vistos como inimigos. É o bem contra o mal. Esse é o cenário político vivido em nosso país.
A cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, virou manchete dos jornais devido ao assassinato que comoveu e preocupou a todos nós, ocorrido no último final de semana (09/07). Trata-se da morte do tesoureiro petista, enquanto comemorava seu aniversário de 50 anos com seus amigos e familiares. O tema de sua festa era o PT e o ex-presidente Lula. O autor dos disparos, segundo a polícia local, foi um policial penal que se diz apoiador de Bolsonaro. Segundo consta no documento (Boletim de Ocorrência), ele desceu do carro armado, gritando: “Aqui é Bolsonaro!”. Nesse crime, não restam dúvidas que a motivação foi política e se caracteriza como um ato de intolerância e fanatismo. Como se não bastasse, o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, comemorou seus 38 anos com um bolo que reproduzia a imagem de um revólver. O tema fazia uma referência a sua nova idade, já que a arma de calibre 38 é popularmente conhecida como “três oitão”. Na decoração, munições e pentes de armas completavam a composição da mesa. O parlamentar usou, durante a festa em família, uma camisa com a imagem de um fuzil e um boné com a inscrição “9MM”, que indica o calibre de uma pistola. Eduardo tem como uma de suas principais bandeira o amplo acesso às armas de fogo. Ele participou no sábado (09/07) de um ato do Movimento Pró-Armas a Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
Já o crime ocorrido em São João Meriti, município na Baixada Fluminense, foi no mínimo repugnante. O médico Giovanni Quintella Bezerra foi preso e autuado em flagrante, na noite do domingo (10/07), por estupro. O anestesista abusou de uma paciente enquanto ela estava dopada e passava por um parto cesárea no Hospital da Mulher em Vilar dos Teles. Profissionais da saúde que faziam parte da equipe suspeitaram do comportamento do médico e o filmaram com um celular escondido. Trata-se de atitude desumana e covarde. É típico daqueles que não se comovem com o sofrimento alheio. O criminoso está preso. Dados obtidos pelo Jornal O Globo, via Lei de Acesso à Informação (LAI), indicam que o estado do Rio de Janeiro foi palco de 177 abusos sexuais em unidades de saúde entre 2015 e 2021. A capital aparece à frente na triste estatística, com 80 ocorrências do gênero no período (45,2% do total), seguida por Niterói (18 casos), na Região Metropolitana, e Duque de Caxias (12), na Baixada Fluminense, cidade vizinha a São João de Meriti. Com seis estupros em hospitais, sem considerar o episódio mais recente, o município onde Giovanni foi preso ocupa a quinta posição na lista, empatado com São Gonçalo, que tem mais do dobro de população. O médico pousa em suas redes sociais fazendo “arminha” (gesto reiteradamente feito pelo chefe da nação). Essa ação por si só não o incrimina, porém evidencia um possível lado violento e um certo apoio ao bolsonarismo[7](grifo meu). “Eu tenho uma certa experiência com condutas violentas, mas é estarrecedor e inacreditável. É gravíssimo: um profissional que deveria estar cuidando do paciente, totalmente vulnerável, em um momento tão importante da vida, em um Hospital da Mulher. Todos os profissionais sabem das violências que sofremos, e ele faz esse crime hediondo. É repugnante”, disse a delegada do caso.
Conforme o ranking da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), o Brasil é o 8º país mais violento do mundo. Pesquisadores justificam essa situação como ausência de políticas públicas federais eficazes. A política armamentista (abertamente declarada) do governo brasileiro contribui para a onda de violência e a sensação de impunidade. Neste caso, bibliotecas são melhores que clubes de tiro, não há dúvidas. O que se nota é que em todos os casos aqui relatados, quando não há o fator político de forma direta (indiretamente sempre tem), há a omissão do governo na criação de políticas públicas que valorizem a vida. Para se ter ideia da situação atual do Brasil, os episódios de violência e intolerância, contra lideranças políticas, aumentaram 23% em 2022, segundo o Observatório da Violência Política e eleitoral(GIEL/UNIRIO).
Por último, cabe ressaltar que esse pequeno texto reflexivo não pode ser omisso à sua proposta. Tentar desvendar, no sentido de mostrar que as evidências não podem ser negadas. Parece existir uma espécie de start para as ações criminosas recentes. Essas ações tem origem na fala de diversas pessoas, cujas atitudes são muito parecidas. Buscam sempre os mesmos alvos: a legitimidade das instituições que sempre garantiram a democracia no país. Quem não lembra de vídeos feitos por certos indivíduos que por gozarem de um certo prestígio em seus respectivos meios sociais, políticos e até religiosos se acharam no direito de expressarem seus posicionamentos como se vivessem em um país sem leis, normas ou regras? Roberto Jeferson, por exemplo, presidente nacional do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e aliado do presidente Jair Bolsonaro, em suas redes sociais mostrou um vídeo, ensinando como usar certos tipos de armas. Lançou para os cristãos, o que ele denominou de kit Anti-Satanás (na visão dele o Comunismo é o satanás). O “Grupo 300 do Brasil”, em maio de 2020, marcharam em frente à STF (Supremo Tribunal Federal), gritando palavras de ordem contra o ministro Alexandre de Moraes. Ele é relator do inquérito no STF que investiga um esquema de produção e distribuição de notícias falsas. O grupo usava roupas pretas e máscaras e carregava tochas acesas. Sara Winter, apoiadora de Bolsonaro, uma das integrantes do grupo, postou vídeo da manifestação. “Chegamos e viemos cobrar as autoridades por um Brasil Livre”. Devemos lembrar que o Brasil é um país livre e assegura a todos os direitos e deveres constitucionais. Em agosto de 2021, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia atacou o Supremo Tribunal Federal (STF) e disse que “o povo é o supremo poder, não a caneta de ministro do STF. E ninguém vai tirar um presidente legítimo com voto do povo na caneta”, disse o pastor em discurso. O tom agressivo, visa sempre atingir as instituições do país. O próprio presidente da república tem dito, seja em suas redes sociais, eventos públicos ou direto para seus apoiadores, que religiosamente frequentam o que se popularizou chamar de “cercadinho”, frases que tiveram efeitos devastadores. O modus operandi é sempre o mesmo. Escolhe-se um alvo e ataca-se. Vamos a algumas das frases:
- “O número de pessoas que morreram de H1N1 é na ordem de 800 pessoas. A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus.” Declaração dada em entrevista à TV Record. O Brasil superaria a previsão de Bolsonaro menos de 20 dias depois (22/03/2021);
- “Eu não sou coveiro, tá certo?” Essa foi a resposta do presidente à pergunta de um jornalista que o questionava sobre o elevado número de mortos naquele dia (116) (20/04/2021);
- “Toma quem quiser, quem não quiser, não toma. Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína” (19/05/2021);
- “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”(11/2010);
- “90% desses meninos adotados vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza desse casal” (Em vídeo reproduzido no programa de Danilo Gentily, sobre adoção por casais gays);
- “Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso” (A um programa de TV, em 1999). E “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (Em entrevista no rádio, em junho de 2016);
- “Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”(05/2020);
Pelo exposto, necessário se faz dizer que muitas das ações e do comportamento que tem tomado conta de alguns brasileiros tem sido sim influenciados pelas falas descompromissadas e patuscadas de certas lideranças políticas. A certeza da impunidade, a possibilidade de burlar as leis ou o poder econômico, também contribui para que os direitos das minorias e dos menos favorecidos, sejam relegados a segundo plano. A intolerância contra o pensamento político do outro, contra a crença religiosa ou contra a opção sexual do outro tem sido motivo de atos violentos e preconceituosos. A exploração das terras indígenas por madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais são apenas alguns dos graves problemas que precisam ser corrigidos em nosso país. Somos todos iguais e queremos um país mais justo e bom para todos. Precisamos de líderes que se importem com o outro, que seja solidário ao sofrimento alheio. É o que eu penso.
Por José Edson da Silva Barrinha, professor de Geografia do IFMA – Campus Pedreiras
[1] Vale do Javari é uma terra indígena localizada nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, no oeste do estado do Amazonas, no Brasil. Foi demarcada por decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso em 2 de maio de 2001. É habitada por diferentes povos indígenas, como os marubos, matsés, matis, kanamari, kulina. Fonte: https://pt.wikipedia.org/ Acesso em 11 de jul 2022.
[2] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/06/18/dom-e-bruno-foram-baleados-e-mortos-com-municao-de-caca-entenda-o-que-diz-o-laudo-da-pf.ghtml/Acesso em 11 de jul de 2022.
[3]https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2022-07-08/suspeito-de-atacar-ato-de-lula-e-kalil-com-drone-tem-21-processos.html/acesso em 11 de jul de 2022.
[4]https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/07/06/suspeito-de-ataque-com-drone-em-ato-de-lula-e-preso-em-minas.ghtml/Acesso em 11 de jul de 2022.
[5]https://www.estadao.com.br/politica/juiz-que-mandou-prender-ex-ministro-milton-ribeiro-e-atacado/Acesso em 12 de jul de 2022.
[6] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2022/noticia/2022/07/08/preso-em-ato-de-lula-e-identificado-e-autuado-pela-policia-por-crime-de-explosao.ghtml/Acesso em 12 de jul de 2022.