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sexta-feira, outubro 4, 2024

Mudaram-se os tempos

CRÔNICA


O aspecto tedioso que prolongava os dias sob a terra quente, ao som do tilintar da enxada na terra quase infértil. Era preciso paciência, muita persistência e fé para garantir o sustento. Nessas épocas o sertanejo suplicava para que Deus tivesse piedade de sua prole, cinco, dez, doze e às vezes chegavam a quinze o número de barrigudinhos famintos pelas brenhas. O sol ardente, do meio-dia, indicava que era hora de recolher-se em respeito ao pão nosso de cada dia, o banquete era garantido no casa do forno, nome dado ao palhoção onde as mulheres dos trabalhadores e suas filhas preparavam o almoço. A farinha de puba e os peixes nativos do rio Mearim eram os protagonistas da fartura, o verdadeiro ouro!

Naquele tempo, dizia meu avô, o povo tinha temor à Deus e nunca nos faltava nada, o segredo era ser grato, bendizer por cada grão que Ele punha em nossa mesa e antes de comerem, os pais ensinavam aos seus filhos a tradição. Todos se aproximavam da mesa onde estavam dispostos os alimentos preparados com zelo pelas mulheres e entoavam o mantra que havia sido passado por gerações, era um sinal de respeito e gratidão pelo pouco que tinham, mas que nunca os faltava – “Benza Deus, quanta comida na mesa. Abençoa Senhor, estes dons. Que beleza!”.

Era possível contemplar cena semelhante à narrada a quem passasse pela estrada e avistasse, no lado do nascente, um senhor com seus cinco netos sentados à beira de um açude sob a sombra de uma goiabeira, garantindo que a tradição simples, mas tão significativa, continuasse. Próximo à estrada, debaixo da árvore frutífera que os protegiam do sol escaldante, as crianças insistiam em desvendar os mistérios que levava a todos da sua região ansiar com ardente desejo para que chegasse o mês novembro. Em resposta aos olhos curiosos, o senhor disse-lhes: Vês crianças, estão sentindo que os tempos mudaram? Mudaram-se as secas paisagens castigadas pela extensa temporada de estiagem no sertão nordestino. Era fato, o perceptível florescer das acácias que coloriam e davam um ar divino à capelinha humilde de São Francisco, erguida pela matriarca da família, que indicava a devoção ao santinho popular, uma grandeza inestimável que transcende os dogmas religiosos e fazia-se presente na vivência de cada um que por ali fora catequizado. São raízes profundas, fincadas em solo árido, quase inóspito, mas que permaneciam de pé, vivas e firmes por serem alimentadas do amor e dedicação incansável de seus ascendentes. 

As primeiras gotas de chuva já podiam ser sentidas na alma do sertanejo antes mesmo de tocar sua pele áspera, resultado do labutar de meses em meio à agonizante dúvida misturada a preces de boa colheita. Hoje, quase 15 anos depois, aquelas crianças tornam a contemplar aquele cenário que passava como um filme, às 5:45 da manhã na estrada, prontos para darem continuidade à tradição que seu avô havia repassado. A saudade apertava dentro de cada um, mesmo após anos aquela memória era viva em suas mentes, reviviam com admiração aquela prosa e só agora compreendiam que não somente era sobre a terra, a chuva, as acácias ou a capelinha. Os tempos mudaram, são novos ventos, novas terras, nova paisagem, o céu tinha um tom mais azul, a vegetação irradiava vida e fartura constante, era possível sentir em cada poro da extensão do corpo a chuva que inundava o horizonte e misturava-se às lágrimas. Enfim chegou novembro e os tempos realmente mudaram.

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