CRÔNICA
Seu Genésio dobra a esquina. Na garupa da bicicleta, Juninho se segura. A alegria é tanta que não está nem aí para o asfalto esburacado. Já seu Genésio, depois de uma semana ralando, ignora o apelo do corpo por descanso. A alegria do filho fala mais alto, apesar de já ter avisado que a brincadeira terá limites e nesse caso, a voz do bolso será determinante. Minutos depois avistam a roda-gigante. Nela, pai e filho partilham de raro momento que lhes possibilita uma vista panorâmica. Não sei quantos metros acima está Deus, puto da vida. Sua zanga só perde para a dos brasileiros na final da Copa de 98. Para ele, não importa o riso de Marquinhos, ou esforço de um pai cansado. Dele o pecado, como evangélico: ter um momento com o filho numa festividade católica.
Numa semana em que se repercutiu, na fala de um líder religioso, a insistente caricatura de um Deus sisudo e punitivo, foi inevitável não refletir, em diversos momentos, no quanto esta perspectiva atravessa o Cristianismo ao longo do tempo. Do papel à tela, o Deus do castigo é uma das molas que sustentam templos, ministérios e a fé de milhares. O chamado temor é um termo dócil para medo.
A julgar pela lógica, Cristo deveria ter feito um quebra-pau em Caná, por ocasião de um casório. Na lógica do “apóstolo” ninguém imaginaria Cristo chegando à festa acompanhando por sua mãe e seus discípulos. Cruz credo uma cena dessas. Menos ainda Cristo salvando o rolê, provendo, milagrosamente, mais vinho. E olha, como dito nos testemunhos bíblicos, que caprichou na qualidade.
Você consegue imaginar o Nazareno sorrindo para ti, numa gaitada que não parece ter fim? Consegue percebê-lo para além do que, em tese, você não pode fazer, por professar segui-lo, ou ele é apenas uma lista de coisas que te dizem proibidas? Vou além: tudo é lítico se tiver o selo gospel ou ocorrer no teu latifúndio religioso?
É interessante notar, a exemplo do caso que envolveu o Festejo de São Bendito, que quem trouxe o Deus emburrado para o meio da “sala” o usou para tentar validar suposta superioridade de conhecimento. “Estão me vendo? Sei mais e por isso estou mais próximo de Deus”. Lembro-me então de Pedro, que afundou quando achou que tinha o rei na barriga. A que Jesus se converte quando a arrogância vira padrão de Cristianismo?
Neste ano, como em outros, acordei cedo e fui acompanhar a alvorada, que marca o começo do festejo. Quando cheguei dona Raimunda Gama lá estava. Sobre seu corpo o peso dos dias. Já tinha subido os degraus que levam ao primeiro andar do santuário. Sua voz, minutos depois, acordaria a cidade. Vi o que ninguém poderia ouvir: Dona Raimunda numa vibração indescritível. Faltasse energia e a estrutura de som, sua fé chegaria aos lares, daria um jeito. Deus, preso em uma bolha como pressupõem alguns, destilaria toda sua fúria. Tiraria do bolso um caderninho de regras. O Cristo dos evangelhos me conduz a outras possibilidades. Nela, pelos mesmos degraus, uniria sua voz a de dona Raimunda e no mais belo dueto ecoariam o nosso:
“Ô Pedreiras, Princesa do Mearim
Todo mundo festejando
Ô, bate tambor pra mim”