Saúde mental da população negra é um direito humano
João Pedro tinha 14 anos e toda uma vida pela frente. Até que, no dia 18 de maio de 2020, foi morto após ter a casa invadida por policiais que participavam de uma operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, numa ação conjunta entre Policia Civil e Federal.
“A polícia chegou lá de uma maneira cruel, atirando, jogando granada, sem perguntar quem era. Se eles conhecessem a índole do meu filho, quem era meu filho, não faziam isso. Meu filho é um estudante, um servo de Deus. A vida dele era casa, igreja, escola e jogo no celular”, disse Neilton Pinto, pai de João Pedro, sobre o ocorrido.
Réus por homicídio duplamente qualificado e também denunciados por fraude processual, pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), os agentes Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, obtiverem decisão favorável à reincorporação, em função administrativa, na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Rio.
Sobre mortes resultantes de violência policial em 2021, dados do 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que 84,1% dos alvos foram negros. É importante destacar que este índice, em relação a população branca, apresentou queda de 31%, mas houve acréscimo de 5,87% entre negros, tomando como base o ano anterior.
A jovem Kathlen Romeu caminhava com sua avó pela rua Rua Araújo Leitão, Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio de Janeiro, uma via conhecida pela intensa trafegabilidade de veículos e pessoas. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), cientes disso, os policiais militares Marcos Salviano e Rodrigo Frias teriam efetuado disparos, mesmo “não havendo qualquer ação que legitimasse a referida agressão”, segundo o MPRJ. Um dos tiros de fuzil atingiu o peito de Kathlen Romeu, que estava grávida de três meses, sendo morta aos 24 anos, em julho de 2021.
“A necropolítica racial é uma realidade que, ao que parece, nem se preocupa mais em esconder-se. Os agentes que deveriam ser ensinados a proteger indiscriminadamente são os primeiros a assinalar como suspeitos negros e negras, sem nenhum outro fundamento a não ser o “achismo”. E esse “achismo” tem nome, é racismo! Se compararmos o tratamento policial a negros e brancos vemos verdadeiras atrocidades. Se formos levantar a quantidade de “enganos” entre Negros e Brancos também temos uma verdadeira atrocidade”
Pontua a pesquisadora e docente Nila Michele Bastos Santos.

Em mais um episódio da violência militarizada em Manguinhos, Zona Norte do Rio, seis pessoas foram assassinadas, em 12 de junho de 2022, em uma ação policial que reproduz um padrão de violência e letalidade do Estado brasileiro. O lavador de carros, Júlio de Assis dos Santos, foi uma das vítimas. Em relato, sua mãe, Lidia da Silva conta o momento em que se deparou com o filho, já sem vida.
“Os policiais não deixavam quem era família entrar, só depois de um tempo, que eu mostrei a foto do meu filho no celular, deixaram”, lembra. “Eu perguntei para a moça [da UPA] se meu filho estava vivo porque parecia que ele estava dormindo. Ela falou assim ‘eu tirei o pulso dele já, ele morreu, está sem pulso’”, relatou Lidia.
Nas paredes das residências do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, as marcas da recente e uma das mais violentas operações policiais, ocorrida no dia 21 de julho de 2022, com 12 horas de duração e 18 mortos. Entre as vítimas, Letícia Marinho Sales, de 50 anos, atingida por tiro dentro do carro, quando retornava para casa no Recreio dos Bandeirantes.
“Um carro estava emparelhando com a gente e tivemos que parar pra respeitar o sinal. Tinha um policial militar em uma blazer e a policial militar que estava em outro carro, levantou a pistola, com o brasão da corporação deles aparecendo. Mesmo assim, deram tiro numa mulher trabalhadora, que tá lá morta por despreparo policial”, relata motorista que acompanhava o casal no momento do ocorrido, em matérias vinculada pelo site Voz das Comunidades.
Segundo inquérito, Letícia Sales foi morta por uma policial militar, que prestou depoimento na Delegacia de Homicídios. Ele teria, supostamente, confundido PM fardado, dentro de um carro, com um criminoso, contra o qual teria disparado 12 vezes, atingindo Letícia no peito.
É necessário lembrar que mesmo havendo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) restringindo a realização de operações policiais enquanto durasse a pandemia da Covid, fruto da mobilização de moradores, coletivos, organizações e movimentos sociais, o Rio de Janeiro foi palco das três maiores chacinas policiais de sua história, ocorrida nos últimos quinze meses. Na chacina do Jacarezinho, a mais violenta, 28 pessoas foram mortas em 6 de maio de 2021.
“Eu acabei de acordar com um tiro de fuzil entrando pelo teto da minha casa e acertando a barriga do meu marido, por causa da operação que tá tendo no Alemão, e detalhe, eu moro a quilômetros do alemão. Alô @PMERJ !!!”
Relata a moradora Ju Azevedo em sua conta no Twitter.
Da situação ficaram as marcas físicas, psicológicas e a sensação de insegurança. “Todo barulhinho que eu escuto dentro do quarto eu já acordo desesperada achando que é tiro, principalmente quando a Maria [sua filha] está em casa. Acho que nunca mais vou ter paz”, diz ela.
Sob contexto, as forças policiais não são identificadas como fator de proteção, pelo contrário, são vistas como ameaças. Em 2021, a organização britânica People’s Palace Projects divulgou o resultado do estudo “Construindo Pontes”, realizado em conjunto com a Redes da Maré.
“Nosso objetivo geral com essa pesquisa foi produzir aprendizados que apoiem a promoção do bem-estar e da saúde mental dos moradores das favelas da Maré, contribuindo não apenas na caracterização do perfil daqueles que sofrem os efeitos de violência direta e indireta decorrente do domínio territorial e conflitos dos grupos armados, mas na análise necessária à proposição e implementação de políticas públicas eficazes nos campos da saúde mental, rede de proteção social e cultural”, explica Eliana Sousa Silva e Paul Heritage, organizadores da pesquisa, realizada entre 2018 e 2020, antes da pandemia, que teve como recorte a Maré, maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro.
De acordo com a pesquisa, cujo questionário foi respondido por 1.211 pessoas em 2019, 44% relataram ter estado em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores, destes, 73% viveram esta experiência outras vezes.
Ao tratar sobre o testemunho de ferimentos a bala ou assassinatos, a pesquisa mostra que “17% dos moradores e moradoras, acima de 18 anos testemunharam alguém ser baleado ou assassinado no ano anterior à pesquisa domiciliar”.
“A gente teve um amigo nosso que morreu em tiroteio, seu Paulo, morreu ano retrasado; minha cabeleireira tomou um tiro de fuzil, foi ver na janela o que aconteceu e morreu, e teve o vizinho que foi comprar pão de manhã com fone de ouvido, não ouviu que começou o tiroteio, morreu com pão na mão na rua”, relata homem, 23 anos, morador, ouvido pelos pesquisadores.
Segundo o estudo “Construindo Pontes”, um total de 13.537 residências sofreram invasões nos 12 meses anteriores à pesquisa, ou seja, de cada 100 moradores maiores de idade, 13 tiveram seus lares invadidos, ação que na maioria das vezes antecede outros tipos de violência, tais como verbais, extorsão e perdas materiais.
“Metade da população (50,2%) sempre sente medo de ser alvejada por uma arma de fogo na Maré. Um número ainda maior (55,6%) sente medo constante de que alguém próximo seja atingido. Se juntarmos a estes grupos os que declaram ter receio “muitas vezes”, os que sofrem ‘com frequência’ do medo de ser atingidos por bala perdida são 63%, subindo para 71% quando se referem a outra pessoa. Portanto, o temor da violência armada acompanha diariamente a maioria dos moradores”, destaca a pesquisa.
Pensar os impactos, inclusive mentais, que a violência policial militarizada exerce sobre quem reside nas favelas é urgente, afinal de contas, chegou a 5,12 milhões, em 2019, o número de domicílios ocupados em favelas no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Revelando um aumento de 59%, até o referido ano.
“Levar conteúdo sobre saúde mental da população negra a partir das experiências socialmente compartilhadas” é um dos objetivos do projeto “Pra Preto Ler”, que nasceu do encontro entre a pesquisadora Bárbara Borges, pesquisadora na área de efeitos psicossociais do racismo e saúde mental da população negra, e Francinai Gomes, pesquisadora na área de adoecimento mental da população negra carcerária e produção de oficinas de antirracismo, ambas estudantes do curso de Psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“Entendemos que para promover saúde, é preciso primeiramente romper o silêncio que é imposto à nossa comunidade. Esse silêncio tem nos impedido de dar contorno às nossas dores, porque quando falamos sobre elas, temos a possibilidade de entendê-las. Então, nosso principal objetivo foi conseguir construir um espaço, mesmo que virtual, de elaboração dessas dores. Poder garantir que pessoas negras tenham acesso às discussões que toquem de alguma maneira na angústia produzida individual e coletivamente pelo racismo”, explicam Bárbara e Francinai, também criadoras do “Pra Preto Psi”, que mantendo uma página no Instargram, acolhem pessoas negras que buscam atendimento focado em psicoterapia. O projeto consegue reunir profissionais de todo o Brasil “que oferecem uma clínica social e racialmente comprometida”.
O “impacto do policiamento militarizado na saúde mental da população negra residente em favelas no Brasil” vem sendo abordado pela campanha “Afrodescendentes Resistindo À Violência Policial” (website). A ação é articulada pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) em parceria com o grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Educação e Políticas Públicas” da Universidade Estadual de Goiás e Universidade de Ulster, no Reino Unido.
Presente nas redes sociais (Instagram, Twitter, ), a campanha dialoga e esclarece sobre o direito humano à saúde mental da população negra, cotidianamente vítima da violência policial militarizada nas comunidades marginalizadas das periferias brasileiras.
Por Ulisses Terto Neto, Diogo Cabral, Mayrla Frazão e Joaquim Cantanhêde