CRÔNICA
Abri a porta e de passo em passo me achei no meio da sala. Nessa altura meus pés já se incomodavam com o piso empoeirado. Meu olhar aguçando percebeu a moldura pendurada levemente torta. O vento entrava por uma brecha na janela, fazendo despencar pétalas com saudades de dias felizes. Como se não bastasse, na cozinha fui abarcado por um odor pútrido. Agoniado, aquele que soube entrar não conseguiu sair. Tic-tac, e eu ali, tentando fugir, mas sem sucesso.
Desta cena fictícia migro para a redação do jornal O Pedreirense – sendo mais preciso, tarde de sábado (18). Quando mãos colhiam fotografias numa dinâmica chamada de “Retratos e afetividade”. Nela, os participantes da oficina de audiovisual “Meu lugar cabe na tela” falavam sobre sentimentos relacionados aos retratos que cada um escolhera. Foi intenso.
Ali me permiti matutar sobre lugar, esse termo tão presente – certamente o mais forte entre as palavras que intitulam o projeto. Cada relato, cada vivência foi reforçando uma perspectiva que já tinha: lugar é antes de tudo gente. Nenhuma esquina nos marca meramente por ser uma esquina (no mundo é o que não falta), mas pessoas nos marcam na esquina e aquele lugar, aquela esquina, não é só mais uma, é alguém que a gente quer perto ou bem longe.
Minha casa é meu lugar preferido no mundo, mas tira meu pai, minha mãe e tudo o que me lembra eles e não fará sentido voltar para lá a cada fim de expediente. Aliás, só chamo minha casa de lar, porque com eles vivo momentos, rotinas totalmente nossas. Ali, no quintal de tijolos expostos, nos permitimos ser afetados, em especial, pelo amor.
Somos lugar, somos abrigo e me permitam um adendo. Se lugares são pessoas, nosso corpo é nosso lugar primeiro. É nossa cabana permanente sem possibilidade de fuga.
Aquele momento na oficina e tudo o que ocorrera durante a semana, me trouxeram importantes lições. Não há como fugir desse lugar primeiro que é o meu corpo, minha mente, minhas mãos entre amar e ferir. Sou o chão empoeirado, o quadro torto na parede e a fulô murcha entregue ao vento. Sou só isso? Não! Jamais! Mas essa parte (feia) do que somos colocamos, como diz o cacoete popular, debaixo do tapete. Não existe, dizemos.
Tenho revisitado um Joaquim impulsivo, intolerante, inflexível. Não, essa versão você não vai encontrar em meu feed no Instagram. Mas esse cantinho, nesse lugar que sou, existe e não, não me traz orgulho algum.
Essa não é uma redescoberta que faço solitariamente. Certamente me apeguei aos cômodos mais belos de mim. Sentir o cheiro pútrido na cozinha? Nem pensar. Ouvir tudo isso tem sido doloroso, mas é importante escutar quem lhe visita. Aqueles que, com autonomia, coragem e amor, ousaram expor o que o tapete esconde. Não querem destruir esse lugar que você é. Desejam apenas que a casa toda não se torne um porão.
“Eu sou meu próprio lar”, diz a canção.
Na manhã seguinte, acordei e me vi acompanhado. Aqui se achava o sol, sua luz feito nota dissonante no cinza predominante. Nossa prosa foi longa, mas o suficiente para me fazer desentortar o quadro, limpar o piso e aguar as plantas.
Cuide bem do lugar que você é como se fosse a próxima visita.