REPORTAGEM ESPECIAL
Enquanto parte do mundo fala em Chat GPT, os moradores do povoado Jatobá, munícipio de Poção de Pedras, Maranhão, sonham com o dia em que terão água encanada nas suas residências. Por hora as torneiras instaladas são mero lembrete de que o Estado não tem pressa, mesmo quando se trata de um direito tão básico. O povo está agoniado, mas quem os representa não.
O sol, apesar da distância, castiga a já tão marcada pele de dona Inês de Abreu. Sua feição contrasta com a idade que diz ter, 64 anos. Nasceu e se criou ali. É parte de sua lida diária curvar-se ante o jiral – estrutura de madeira usada para lavar roupas e louças, comum em residências rurais, aonde o acesso a água é feito por meio de açudes e poços. Ela, que não tem um em sua residência, agradece a benevolência do vizinho.
“Tem vez em que a gente não se banha bem, porque a água é pôca e a gente não tem coragem de pegar nos poços alheios”, destaca dona Inês. Segundo ela, nem toda água que conseguem é própria para o consumo. “Não é boa nem pra beber, nem pra lavar roupa”, explica.
Em outro ponto do povoado, Paulo Vitor Silva Alves acompanha sua mãe na ida a outro poço. “Dá vontade de chorar” diz ele, que é atravessado pela vida sofrida de sua mãe. “Porque é um sofrimento ver essas mulheres carregando água na cabeça”, diz o adolescente de 12 anos, que ao usar o termo mulher no plural, dimensiona o descaso. “Ter água na torneira para todas as mães de família”. Eis sua prece.
No centro de Jatobá uma estrutura profetiza novos tempos. A obra, erguida com verbas do Governo do Estado do Maranhão, foi ironicamente iniciada no dia primeiro de abril de 2022 e o prazo dado para sua finalização foi de 90 dias. Faz sentido a data escolhida.
Sob competência da Secretaria de Estado das Cidades e Desenvolvimento Urbano (Secid), tem como objetivo “restauração, fornecimento, montagem, instalação, operação e comissionamento de sistemas simplificados de abastecimento de água”. Seu valor não é informado. A população, tão no escuro quanto água de poço, cobra Deus e o mundo.
Via Lei de Acesso à Informação (LAI), solicitamos informações a Secid. Até o fechamento desta reportagem nenhum retorno fora dado. A pasta é comandada por Joslene Rodrigues.
Via Instagram, indagamos o deputado estadual Júnior Cascaria, que tem em Poção de Pedras sua principal base eleitoral. Não houve retorno.
Seu José Carlos Gomes de Oliveira (61) é uma das vozes de um povoado habitado por aproximadamente 300 pessoas. A ação do poder público, segundo ele, não contempla os dedos de uma mão. Cita o asfalto e a escola, cujo obra de reconstrução foi iniciada, com bastante atraso, após exporem o descaso em reportagem publicada pelo jornal O Pedreirense. “Eu sei que sua mãe, que conheço muito bem, nunca sofreu o que essas mulheres têm sofrido. Porque viajar 6km com uma roupa na cabeça pra lavar, no Canudo ou na Fortaleza…”, argumentou o morador indignado, em fala direcionada ao gestor do município, Francisco Pinheiro.
Via Instagram, também o indagamos, mas até aqui não houve resposta.
Caminhar é o gesto que une Maria do Socorro, mãe de Paulo Vitor, e Karleane Abreu. Uma rumo ao poço, a outra em direção ao açude. A primeira se põe próxima à beira cimentada. A segunda repousa a bacia com as roupas sobre uma tábua úmida. No vai e vem da escovação a espuma trata de ocultar-lhe as mãos.
Aos 52 anos, dona Maria lista os problemas de saúde, causados ou agravados pelo peso de uma vida sem água encanada. “Tenho hérnia de disco no espinhaço, bico de papagaio nos ossos e esporão de galo nos pés. A gente com água na torneira é bom né”, diz a moradora, com olhar que se equilibra entre o que não tem e o que espera.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que, em 2020, 43,5% dos maranhenses não possuíam acesso ao sistema de rede de água.
“O consumo de água contaminada pode gerar vários problemas de saúde. Doenças como a hepatite A, giardíase, amebíase, leptospirose, ascaridíase (lombriga), febre tifoide, dengue, diarreias entre outros”, destaca a nutricionista Camila Veras.
No Maranhão, aproximadamente 27 mil habitantes foram internados por doenças relacionadas à água, em 2020, segundo o SNIS.
“Os grupos mais afetados por doenças causadas pela água contaminada são as crianças menores de 5 anos, idosos e pessoas com deficiências imunológicas. São transmitidas por microrganismos patogênicos de origem intestinal animal ou humana, através do contato da água com as fezes. A água contaminada pode trazer prejuízos a uma população quando ocorre a ingestão direta, por meio de alimentos, pelo uso dessa água no lazer, higiene pessoal, agricultura e indústria”, ressalta Camila.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), via relatório “Pobreza na Infância e na Adolescência”, de 2018, estima que no Brasil 14,3% das crianças e adolescentes não tenham o acesso à água garantido. Ou seja, 7,6 milhões de crianças e adolescentes.
O Brasil, até 2019, ocupava 11ª posição no Ranking de Saneamento Básico, em relação a outros países latino-americanos.
O Ranking do Saneamento 2023, publicado pelo Instituto Trata Brasil, aponta que 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água potável. Já quando o assunto é coleta de esgoto, o número chega a marca dos 100 milhões de pessoas que não são contempladas com este serviço.
O estudo aponta que há uma desigualdade regional no que diz respeito ao serviço de saneamento básico. Cidades da região Nordeste e Norte aparecem de forma mais expressiva entre os números negativos.
A história de Dona Inês, Maria e Karleane são recortes de um universo de 13 milhões de mulheres brasileiras sem acesso a água tratada, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), de 2019.
Em Jatobá, a paisagem que se matem verde, após farto período chuvoso, se contrasta com cenas que lembram a seca. Só que longe de ser omissão divina, o não acesso a água tratada é um ato político com digitais humanas. “As torneiras estão de enfeite”, diz Karleane. “Transformador. Falta só isso para termos água”.