COLUNISTA
Embora o dia 14 de agosto seja considerado, para a imensa maioria, um dia normal, há aqueles que têm na data a lembrança de um acontecimento marcante, como o nascimento ou o falecimento. Em nossa cultura, a repetição de uma data significativa costuma ser celebrada com festas, quando se recorda uma data benéfica, ou com reflexões, pesar e homenagens, quando se recordam eventos trágicos. No nosso caso, trata-se da segunda opção. Hoje venho vos lembrar de um triste momento de nossa história.
Em 14 de agosto de 2024, completam-se exatos 151 anos do brutal assassinato de Maria da Conceição, popularmente conhecida como Mariquinhas, cometido pelo desembargador Pontes Visgueiro. Este crime, que ocorreu em 1873, não deve ser esquecido, pois, apesar de ainda se valorizar figuras de destaque, são as histórias dos sujeitos marginalizados e subestimados que conseguem representar, com mais clareza, as realidades do país.
“O horroroso crime”, como os jornais noticiaram em 1873, chocou a sociedade brasileira e ficou registrado nos anais da história como “O Crime do desembargador Pontes Visgueiro”. A jovem, que aparentava ter entre 15 e 16 anos, foi convidada a se encontrar com o antigo amante devido a promessas de presentes. Apesar de já ter demonstrado medo e vontade de se afastar dele, aceitou o convite, talvez motivada pela curiosidade ou pela necessidade de ter algo que a ajudasse a sobreviver. Uma vez no sobrado do desembargador, acabou cloroformizada, estrangulada, esfaqueada, mordida, esquartejada e colocada em um baú. A brutalidade com que foi tratada não lhe permitiu que, ao menos, fosse a protagonista da história do seu próprio assassinato.
Este papel foi atribuído ao seu assassino, um homem branco, sexagenário, desembargador, rico e proprietário de escravos. Em seu julgamento, ele foi apontado como uma pobre vítima de uma “mulher devassa”, que o levou a perder a razão e, por consequência, a matá-la. Logo, não se tratava apenas do homicídio, mas dos motivos que o levaram ao assassinato.
Assim, Mariquinhas não foi apenas vítima de Pontes Visgueiro, mas também de um sistema patriarcal que a desumanizou, reduzindo-a em seu gênero e como objeto de posse de um homem poderoso. A tragédia de Mariquinhas não foi um evento isolado, mas sim parte de um padrão de violência contra as mulheres que se manteve ao longo dos séculos. Ele revela não apenas a violência extrema contra as mulheres no passado, mas também a cumplicidade da sociedade que, em muitos aspectos, permitiu que o machismo e a misoginia se tornassem estruturais e assegurassem que as violências de gênero persistissem até os dias de hoje.
A história do assassinato de Mariquinhas precisa ser contada e enfrentada como um marco na história da violência de gênero no Brasil. Passados seus 151 anos, é crucial que não a deixemos cair no esquecimento, pois, apesar de todas as lutas e conquistas feministas, a história de Mariquinhas ressoa de maneira dolorosa em inúmeras mulheres que, ainda hoje, sofrem violência doméstica ou têm suas vidas ceifadas pelo machismo e pela misoginia estrutural.
A persistência desse mal é evidente quando observamos os dados de feminicídios, que é o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, no Brasil. É uma realidade cruel. Segundo o relatório da Anistia Internacional, em 2023, foram registrados 1.463 casos de feminicídio, um aumento de 1,6% em relação ao ano anterior. Este número é ainda mais alarmante quando consideramos que 62% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres negras.
Esse genocídio velado demonstra como a violência contra a mulher no Brasil é atravessada por uma interseccionalidade entre gênero e raça que torna as mulheres negras ainda mais vulneráveis à violência, refletindo um racismo estrutural que amplifica a misoginia. Estes dados nos impelem a considerar que a violência de gênero não é uma questão do passado; ela está presente, moldada por um sistema patriarcal, machista e misógino que insiste em subjugar e aniquilar as mulheres.
O caso de Mariana Costa, assassinada pelo cunhado Lucas Porto em 2016, é um exemplo contemporâneo que ecoa a tragédia de Mariquinhas. Mariana, uma jovem publicitária, foi assassinada em seu apartamento em São Luís, Maranhão. Lucas Porto, assim como Visgueiro, não aceitou a rejeição e, em ato de possessividade, dominação e violência, (características que estão enraizadas no patriarcado e machismo), tirou a vida de Mariana. O presente caso, que também chocou a sociedade maranhense, demonstra a magnitude da violência de gênero como uma realidade devastadora.
Tal como Pontes Visgueiro, Lucas Porto representava uma elite de homens, ricos e brancos que se valem de seus privilégios para exercer controle sobre as mulheres. A morte de Mariana não foi apenas consequência de um ato de violência individual, mas também o reflexo de uma sociedade que ainda não protege adequadamente as mulheres, especialmente as mais vulneráveis. Pontes e Porto são marcos de uma continuidade histórica da violência contra a mulher no Brasil.
Mariquinhas morreu há mais de um século, mas a ferida aberta por sua morte continua sangrando. Assim, lembrar do 14 de agosto é essencial, não apenas por sua história, mas também para podermos refletir sobre as raízes históricas do machismo e da misoginia que perpetuam o ciclo de exclusão, violência e feminicídio que parece inquebrável.
Devemos, portanto, lutar contra o esquecimento. Lembrar Mariquinhas é um ato de resistência contra a invisibilidade que cerca as mulheres vítimas de violência. É um chamado à ação para continuarmos a lutar por um futuro onde as mulheres possam viver livres de violência e opressão. É afirmar que suas vidas são importantes, que suas histórias não serão apagadas e que continuaremos a lutar até que nenhuma mulher negra, indígena ou branca, rica ou pobre, jovem ou idosa, cis ou trans, tenha seu destino selado pelo machismo e pela misoginia.
ENTRE PONTES E PORTO, O MAR DE SANGUE É O DE TODAS AS MULHERES e continua a escorrer por entre as brechas de uma sociedade que ainda não se libertou completamente das garras do patriarcado, machismo e misoginia. Somente ao gravar, denunciar e lutar contra essa violência, poderemos, quem sabe, interromper esse mar de sangue que teima em nos inundar.
Por todas as Mariquinhas, Marieles e Marianas e tantas outras vítimas, não podemos permitir que suas histórias sejam esquecidas. Devemos honrar suas memórias e continuar a lutar por justiça, igualdade e equidade.
Por Nila Michele Bastos Santos, doutoranda em História na Universidade Estadual do Maranhão. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Historiadora. Psicopedagoga. Especialista em Formação de Professores. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora do LEGIP – Laboratório de estudos em Gênero do Campus Pedreiras.