25 C
Pedreiras
quinta-feira, dezembro 12, 2024

Entre o ignorado, silenciado e o desconhecido: sistema de ensino, racismo e o tema da redação do ENEM 2024

OPINIÃO


O tema da redação do ENEM, ‘Desafios para a valorização da herança africana no Brasil’, expôs duplamente o racismo estrutural da sociedade brasileira. Por um lado, assumiu o desafio que se tem para reconhecer as imensuráveis heranças africanas para a formação de nossa sociedade – que, inclusive, extrapolam a visão dos semióforos comumente associados aos africanos no Brasil -, por outro lado demonstra que a maior dificuldade do estudante brasileiro com o tema foi imposta pelo próprio sistema de ensino, que expressa a colonialidade do saber/poder, eurocêntrico e racista em sua constituição, seus princípios e sua execução.

Quando falamos em heranças africanas no Brasil é comum a associação reducionista que considera somente alguns aspectos como a culinária, religiosidade, capoeira, samba e em algumas dezenas de festividades e danças, como se fora aspectos folclóricos de nossa sociedade nada mais existisse de contribuições das dezenas de povos que forçadamente foram trazidos ao Brasil.

Essa é só mais uma expressão do racismo brasileiro, que tem provocado silenciamentos e apagamentos de personalidades negras, feitos históricos e contribuições significativas para o desenvolvimento de nosso país. O legado afro-brasileiro se estende a uma forte presença na intelectualidade, literatura, artes, ciência e tecnologia, política, economia, dentre outras. Consequentemente, produzem a ideia errônea de que o povo brasileiro não deve quase nada aos africanos e seus descendentes.

Chegamos, então, ao segundo ponto que destacamos como fundamental para explicar como o tema da redação expõe o racismo em nossa sociedade. Considero a educação escolar brasileira a grande vilã dos estudantes na tarefa de desenvolver sua produção textual. Os silenciamentos e apagamentos a que nos referimos anteriormente, em grande medida, são responsabilidade de nosso sistema de ensino, que, pensado por brancos, diminui a importância africana na construção do Brasil ao elaborar currículos numa perspectiva colonialista, pautada nos valores e princípios da cultura europeia, destacando os feitos e as personalidades brancas.

Tudo isso se reflete na formação de professores e na escolha dos livros didáticos, que destacam com veemência os feitos e as personalidades brancas, tornando a escola um veículo de fortalecimento da valorização dos símbolos europeus e diminuindo as possibilidades de reforçar a identidade étnico-racial e a autoestima do aluno negro, que não identifica sua ancestralidade como nada além do que escravizados, como indivíduos desprovidos de razão, inteligência.

Vale ressaltar que os silenciamentos provocados por nosso sistema de ensino são providenciais, uma vez que o país criou, há 21 anos, instrumentos para a promoção da educação para relações étnico-raciais e de uma escola antirracista, através da Lei nº 10.639/03. Passado todo esse tempo, os cursos de formação de professores pouco discutem nossa africanidade, os livros didáticos quase nada falam sobre a África pré-colonial – rica, influente e poderosa -, e pouco estimulam debates sobre relações raciais e racismo no Brasil. Dessa forma, seguimos produzindo mentalidades reducionistas quanto ao grande legado afro-brasileiro para nosso país.

Imagina ter que fazer uma redação com o tema proposto e ter sido educado a partir de uma visão eurocêntrica, acreditando que a África era um continente pobre, desconsiderando a existência dos diversos poderosos impérios africanos pré-coloniais, que os escravizados viviam em situação de penúria na África, que as religiões de matrizes africanas são demoníacas, desconsiderando todo o repertório intelectual, científico, tecnológico  e artístico dos africanos e afrobrasileiros, baseando-se  em estereótipos que reduzem as heranças africanas a um conjunto de influências nos hábitos alimentares, festas e danças e visões deturpadas sobre a religiosidade.

Para muito além de técnicas de produção de texto, um dos principais desafios a ser vencido é o próprio racismo estrutural, que vem há séculos construindo uma sociedade desigual em todos os aspectos, que não educa para a diversidade, que é extremamente desigual, mas prega a meritocracia como meio para superação dos problemas de ordem socioeconômica, que, sequer promove na escola saberes que desconstruam as visões preconceituosas e racistas, enraizadas no pensamento social, nas instituições e nas práticas cotidianas.

O tema da redação do ENEM pode até ter o objetivo de produzir reflexões sobre os desafios para o reconhecimento da herança africana no Brasil, mas se tornou um instrumento poderoso para pensarmos a sociedade brasileira, nosso sistema de ensino e as práticas pedagógicas por uma perspectiva crítica, decolonial e antirracista.

Por Ernesto Basílio, Sociólogo/Antropólogo, Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais/UFMA e Mestre em Ciências Sociais

- Publicidade -spot_img
Colabore com o nosso trabalho via Pix: (99) 982111633spot_img
- Publicidade -spot_img

Recentes

- Publicidade -spot_img

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Notícias relacionadas