OPINIÃO
Quando parte da cidade se aquieta, depois de um dia daqueles, é quando lá por casa sentamos à mesa para jantar. Em uma dessas noites, mãe puxou o celular para me mostrar um vídeo, daqueles comuns às vésperas do Halloween. Nada de novo no boicote à festa do cão defendido por uma cidadã no exercício do direito de manifestar sua opinião. Não ferindo direitos humanos fundamentais e não virando Projeto de Lei (PL), acha guarida na legalidade. Fez uso do direito sem violar outros. Que peso a recomendação dela terá sobre os pais? Aí é outra coisa. Com diz uma amiga: é subjetivo.
Quem inventou o Halloween? Quais suas influências? Do ponto de vista da história isso pode ser debatido. No campo da religião, sem aqui pretender mergulhar nas complexidades, toda cultura não orientada pela Bíblia Sagrada, por exemplo, é coisa do Cão. Aliás, não há concordância teológica nem entre as igrejas ditas evangélicas, imagine entre essas e outras práticas religiosas. A lógica é simples: tudo aquilo que não é abarcado por determinada interpretação que se faz da Bíblia, é automaticamente colocado na conta do Capeta.
Essa história de uma festa em celebração ao Diabo, imagino, deva lhe parecer tão cafona, quanto medieval. É como se ele fizesse questão de ser notado, sendo capaz até de aparecer em selfs feitas por criancinhas entre doces e travessuras. A julgar pelo mundo das coisas, o diabo usa outras fantasias, mas nada que cause espanto, pelo contrário. Não temo o capiroto fantasiado de vampiro, temo o capiroto que se faz de santo.
Somos seres imparciais, extremamente seletivos e nossa percepção do mundo passa por essa premissa. Ver o Diabo nisso e naquilo, também. Nessa lida diária com o jornalismo, todo dia me deparo com faces do Capiroto. Essas sim, me causam pavoroso esperanto, preocupação e inquietude. Listo algumas delas.
Você consegue enxergar o Diabo na condição deplorável de uma parcela populacional, cada vez mais numerosa, perambulante pelas ruas de Pedreiras? Você o percebe atuante quando a sociedade normaliza esse tipo de situação? Não sendo um caso isolado, já se perguntou que contexto social tornou isso possível?
Ouve a gargalhada do Diabo na violência cada vez mais organizada e crescente? É graças a ela que famílias são atravessadas por dores de toda natureza. Para muitos dos nossos jovens o tribunal das facções é o próprio juízo final. A omissão do estado (por vezes conivente e participativo) também lhe parece diabólica?
Você consegue perceber o tinhoso na sua oração seletiva, naquela que só lembra de quem te faz bem? Ou não há nada de diabólico no teu engajamento pró Israel em detrimento de vidas igualmente valiosas em Gaza? Quando você se alegra com o massacre de Netanyahu, sobre o povo palestino, fica mais parecido com quem, Deus ou o Diabo?
Ele está por todo canto. No Maranhão, por exemplo, sua face é notada na opressão vivida por populações campesinas e comunidades tradicionais, sob o símbolo de um desenvolvimento que separa, corrompe a relação homem e território e decreta a morte da terra, das águas, florestas e povos. A Comissão Pastoral da Terra informa que 424 processos de titulação estão parados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Desde 2024 apenas foram concluídos. Isso te assusta?
Nós celebramos o Diabo quando naturalizamos a concentração fundiária e quando naturalizamos este fenômeno pai de tantas outras desigualdades. Nada é tão made in Satanás quanto a suposição de que somos donos da Terra, mesmo que seja só de um palmo, pervertendo a ideia de que é um bem comum e seu acesso um direito fundamental. É o diabo que se alegra com sobras nas mesas de alguns e com a escassez nas mesas de milhões: seja de terra, pão ou perspectiva de futuro.
O Diabo é o homenageado quando a Terra é devastada por ouro, madeira, lucro e cercas. O que é o Halloween se ele pode fazer a festa nas labaredas de fogo que consomem o Pantanal e pular no carnaval das enchentes? Todo dia ele festeja e não é da nossa alegria que a sua se alimenta.
Há quem veja o Diabo no Halloween, mas ache super normal projetos de poder que atravessam a política em diferentes níveis, ocupando espaços, fileiras e até púlpitos. Há quem veja o Diabo na figura de Judas, mas não o note em ‘mensageiros de Deus’ tão desprovidos de moral, amor, piedade e exemplo. No sentido inverso, há quem veja Deus em figuras que subvertem a ordem, politicamente camaleônicas e inquestionavelmente corruptas.
Não temo o Diabo que se fantasia de Diabo, temo quando ele se finge de Deus.