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sexta-feira, outubro 4, 2024

Almerinda: a lavadeira que virou música

Ela não tem pressa e os cabelos brancos justificam. Na memória o outrora, aquele que “não volta” mais, como versa o dito popular. Algo do qual sinceramente discordo, pois na mente, o passado não se foi por completo. Diante do desconhecido repórter, duas cadeiras postas. Frente a frente, aquela mulher até então desconhecida agigantou-se a cada detalhe relatado sobre sua história. No horizonte da prosa, nossa Almerinda Pereira Guimarães (86 anos) tomou o lugar do sol.  

Mas antes de partilhar os saberes deste momento, preciso evocar outro.

“Almerinda! Almerinda! Tua dor não finda”, mensagem ecoada, numa noite de sábado, sob regência do jovem Luís Augusto, popularmente conhecido como Sued. Coube-lhe interpretar uma música forte por natureza, haja vista o nível de representatividade que a composição, do pedreirense Allan Roberth Vieira Alves, traz sobre a realidade de muitas mulheres em anos não tão distantes.

“Um dia lembrando das mulheres lavadeiras do Rio Mearim me veio a inspiração de fazer uma poesia e o nome mais forte que me veio à mente foi o de dona Almerinda”, pontua Allan Roberth.

Almerinda Pereira Guimarães, lavadeira (Foto: Joaquim Cantanhêde)

Sua poesia, melodiada pelo escritor pedreirense Joaquim Ferreira Filho, viraria música e caberia a Sued imprimir sua voz ao cantar, nas linhas tortas do o reggae e do hip-hop, esse passado presente.

“Sempre via dona Almerinda passar com pesadas trouxas de roupa para lavar na beira do Rio Mearim e também para deixar a roupa na casa dos seus clientes na rua grande. Me impressionava como uma mulher tão esguia, magrinha, podia com aquele peso todo. Aliado a isso eu conhecia sua história; a casa de taipa, os filhos com fome, dentre eles um que era especial. O marido alcoólatra e muito rude. Tudo isso me marcou profundamente, especialmente porque ela sempre estava sorrindo”, descreve Allan Roberth, no sublime ato de revistar passados que convergem na famosa rua da Boiada.

Natural de São João dos Patos, Maranhão, dona Almerinda cresceu em Barra do Corda. Sua educação se deu num vínculo umbilical com a Igreja Católica Apostólica Romana, sob influência das irmãs franciscanas e frades caputinos, no Educandário São José da Providência. 

“Homem e mulher não estudavam juntos, era separado. Não é que nem hoje”, descreve sobre sua a infância na “Rua do Giz”. Em certa altura da vida, Almerinda deixou de ser “besta”– expressão usada por ela na prosa. Com os estudos para traz, casou-se aos 17 anos com o pernambucano Antônio Amorim Pontes, no dia 25 de dezembro de 1952.

A vinda para Pedreiras ocorreria em 1957. “Trazia uma meninazinha molinha. Benilma, a primeira de 14 filhos. “Apenas três estão vivos”, diz ela.

Seu Antônio Amorim começou a trabalhar como encanador, de ponta a ponta da cidade. Isso garantiu-lhes uma estabilidade financeira numa época em que as tubulações que cortavam a cidade eram de ferro. “Nesse tempo tinha a ‘Formiga”, que era o cabaré dos ricos, hoje rua do Tamarindo (Trizidela do Vale). Lá o povo jogava copo de cerveja na cara do compadre Mundico Atta, que mandou chamar meu marido, um pernambucano com sangue no olho, dizendo que era pra consertar um cano. Ele foi achando ruim, por ser de noite, fora de hora. Chegando lá descobriu que não era cano. Era pra ir guarnecer o compadre no Cabaré da Formiga. Foi o primeiro dia, não me disse nada. No terceiro dia ele bebeu. Pegou a se embriagar que não trabalhava mais”.

Almerinda Pereira Guimarães, lavadeira (Foto: Joaquim Cantanhêde)

A vida tranquila deu lugar aos dias difíceis. Recorte lembrado na música pelo seguinte trecho: “Os filhos sem comida, o marido na bebida. Como é dura a tua lida”. Mas o Mearim, rio que não faz distinção entre os de casa e os migrantes, se tornou o meio pela qual sua família sobreviveria.

“Me joguei dentro desse rio para lavar roupa. Lavei para aquela família do Valdeci todinha. Lavei para Dr. Carlos Melo, finado Zé Maia. Era direto! Não tinha domingo, nem dia santo. Quando engravidava e tinha os filhos, passava quinze dias, um mês, e começava a lavar de novo. Meus patrões me ajudaram muito”, descreve Almerinda a lida que começava no rio e terminava em casa, com a passagem da roupa nos tempos dos ferros à brasa. As crianças, à medida que cresciam, ajudavam no trabalho.

Quando falo que a coisa mudou bastante, ela, com aguçada ironia, enfatiza: “A máquina de lavar derrota a roupa. A gente lavava no rio, ficava cheirosa, não deformada. Hoje uma roupa em um instante deforma. Não acho vantagem”. Ouvindo-a não contive o riso ante a coragem do seu saber de lavadeira. Almerinda, com eu clássico Casio F–91W, que lhe informa a hora, não inveja essa tal modernidade.

“Representa as mulheres que trabalham para pagar o seu sustento, educar seus filhos. Essa é a verdadeira mulher na pessoa de dona Almerinda. A música só quis mostrar isso”, frisa Joaquim Filho.

A homenagem foi uma das cinco postulantes no Festival de Música Juvenil Pedreirense, sendo interpreta ao vivo na Praça Corrêa de Araújo, no dia 07 agosto. A apresentação, naquela noite, foi acompanhada, inclusive, pela filha caçula, Janecleide Amorim Nascimento.  

“Almerinda é a mulher que tem força, que vai à luta todo dia, que acordar para sustentar sua família e persiste. Almerinda são vocês que estão aqui hoje”, disse Sued durante sua apresentação no festival.

Almerinda Pereira Guimarães, lavadeira (Foto: Joaquim Cantanhêde)

E a lavadeira, o que ela diz sobre essa história de ter sua trajetória musicada?

“Eu adorei! Não pude ir, mas colocaram no meu ouvido e eu agradeci”.

Almerinda, feliz com a homenagem, sabe o tamanho de sua luta. Não joga fora seus saberes e reconhece o quão única é. Seu protagonismo pode ser visto a partir da dialética da superação ou pelo viés da condição feminina em sua época. “Tudo tem preguiça e só querem saber da vaidade”, diz sobre as mulheres de hoje. A idade, já não mais lhe permite tanto esforço. As mãos que limpavam os trajes de parte de nossa elite, se erguem no esforço tímido dessa senhora em suas devoções diárias. Reza dois terços por dia. Diz ter perdido um filho em virtude do marido ter esquecido a porta aberta ao sair para ir atrás de uma parteira para as bandas do bairro do Engenho. “Naquele tempo era chuva de matar fome. A água invadiu, com o vento. Não tive nada, mas o bichim morreu com seis dias de nascido”.

Tanto tempo depois, nem Almerinda e o rio Mearim são mais os mesmos. “Conheci a lancha Rio Corda, ia e vinha, era de andar. O rio é fundo. Hoje em dia tem lugar que a gente anda com a água no meio da canela. Fico triste que o rio era um rio, hoje é um igarapé”.

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Joaquim Cantanhêde
Joaquim Cantanhêdehttp://www.opedreirense.com.br
Jornalista formado pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
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