Tudo começa pela “Golada”, famosa rua cantada por João do Vale em “Pisa na Fulô”. Anualmente encharcada, abraça o Rio Mearim. No fim das contas se tornam um só, mas a união tem prazo de validade. E quantas não foram profanadas nos cabarés ribeirinhos de outrora, cuja fama ecoa pela boca dos mais velhos? Digam o que quiser, mas esse canto da cidade tem histórias singulares, que vão muito além do profano. Se um dia foi conhecido como reduto do pecado, hoje recebe centenas de católicos durante a procissão fluvial de São Pedro, que “deságua” na capela do padroeiro dos pescadores, em Pedreiras, Maranhão.
É falando da Golada que Raimunda Rodrigues Trindade (Raimunda Gama, 80 anos) se desarma, deixando a desconfiança comum a quem viveu muitos carnavais. Aliás, só os mais íntimos sabem de sua paixão pela Mangueira e por futebol. A caravela, parte do símbolo do time Vasco, justifica a escolha de uma mulher dividida entre o rio e a terra, à prova do tempo e regada por fé. Para o senso comum Raimunda é devoção, simpatizada por uns e não tão palatável para outros. De fato, sua história se confunde com os 81 anos da Paróquia de São Benedito. Mas Raimunda, em entrevista ao “O Pedreirense”, se mostra plural: artesã, contadora de histórias, amante de política, indignada com a politicagem e aos 80 anos de idade, mais inquieta do que nunca.
O Pedreirense: Você fala da rua da Golada com muito gosto. Que memória traz deste lugar?
Raimunda Gama: Nasci ali, na chamada rua da Golada. Minha mãe gostava de contar histórias pra gente, à noite. Você sabe por que a rua Manoel Trindade chama-se Boiada? Sabe por quê? Os vaqueiros vinham pela região de Grajaú, Barra do Corda, trazendo as boiadas e passavam por Pedreiras. Quando chegavam na região próxima onde se encontra a rodoviária, os bois faziam uma curva para poder tomar a avenida. A gente chamava de rua grande, ao invés de Avenida Rio Branco, pelo tamanho dela. O povo não sabe ler, mas tem seus provérbios. Os bois faziam um estilo de curva e povo achava parecido com uma gola de roupa. Puseram então o nome “rua de Golada”. Minha mãe gostava de contar isso pra gente. No decorrer do tempo, quando a ponte (Francisco Sá, que divide Pedreiras e Trizidela do Vale) era de madeira, atravessada no meio do rio, vinham as lanchas, os batelões, com algodão, arroz e babaçu. Ela era tirada e depois voltava para o lugar. Quando me entendi, já mocinha, doze anos, a ponte era de madeira. Seu Tiago Costa era quem mais fazia os consertos. Trizidela do Vale uma extensão, um bairro. Cresci nessa região. Brincando, atravessando o rio, pulando… Nessa época, no rio, a gente quase não via o sol, porque havia planta nativa tanto de um lado, como do outro. Era uma sombra grande. Pés de Ingá, Crioli, mas tudo isso foi desaparecendo com o desmatamento. Você sabe que o ser humano tem uma tendência à destruição.
OP: Como a senhora iniciou seu caminho no catolicismo?
RG: Nasci no dia 24 de novembro de 1939. Minha mãe me levou para a igreja nos braços dos meus padrinhos para ser batizada no dia 01 de janeiro de 1940, mas minha história com igreja demorou, foi em 1962. Naquela época era muito difícil. Morava numa região em que não era tão fácil a gente ter participação ativa. A missa era de costas, em latim, com Monsenhor Gerson. No dia 22 de junho de 1962 entrei na Legião de Maria, daí são 59 anos. Tive um casamento que não foi muito bem. Fui traída, me separei e não quis mais ninguém. Dedicando minha vida exclusivamente à igreja. Faria tudo de novo se preciso fosse. Sou muito feliz. Não me vejo fora dela.
OP: O que é ser uma mulher católica?
RG: Primeiro é interessante a pergunta: o que é ser mulher? São duas perguntas. Ser mulher já é muito difícil e quando entrei para a Legião de Maria tive que fazer um juramento, porque não era mais casada e tinha que jurar que não iria ter outro casamento. Separada não podia fazer parte da igreja. Me comprometi com meu batismo. Como mulher sofri muito, porque é difícil ter convicção sem se vender, seja seu corpo, sua vida. Por exemplo, ser fiel, honesta, participante e sincera. E quando ela é pobre… Sempre trabalhei como artesã e costureira. A minha vida foi toda voltada para as raparigas (hoje sei que são as prostitutas). Tanto costurava para elas como também era professora dos filhos delas. Fazer parte da igreja com uma fé que é universal, ter essa atitude de mulher, participando de reuniões. Naquela época se entrava na igreja, a mulher com o marido, mas cada um ficava de um lado. Presenciei isso. As mulheres não sentavam ao lado dos homens.
“Me sinto uma mulher completa. Gosto de carnaval e de futebol. Acho bonito vinte e duas pessoas correndo por uma bola. Sabe como interpreto isso? Vinte e duas pessoas correndo em busca do reino de Deus. Vejo-nos correndo, juntos, para salvar a humanidade”
Raimunda Gama
OP: A senhora presenciou muitas mudanças na igreja ao longo dos anos. Quais lhe foram as mais significativas?
RG: Presenciar o padre virar de frente pra gente e celebrar em português. Vivi esse momento. Segundo ponto, a igreja era machista, era dos homens. Mulher não lia na igreja. Havia uns cantos quando eram as freiras. Não podíamos dizer que erámos legionárias. Vi a mulher se integrando e eu dentro desse contexto. Estava ali, vendo a igreja dando passos longos. O padre Jacinto Brito chegou em 1972 e a liturgia começou em 1973. Entrei, mas não sabia ler muito bem. Só tinha o primário. Com 12 anos já tinha feito o quinto ano, aí não estudei mais. Essas mudanças não só vi, convivi com elas. Fazer uma pregação na igreja sendo mulher, entendeu? Quando comecei a me sentir gente, mulher e atuante. Tenho orgulho de ser parte integrante da história da minha cidade. Pode ser no campo social, religioso… Gosto da política, não gosto da politicagem, odeio. Faço parte de um partido chamado JC, Jesus Cristo, meu partido é Ele, defendendo o bem comum. Foi o que Ele fez. Me sinto uma vereadora nata (risos).
OP: O que prevalece, a política ou a politicagem?
RG: A pergunta é muito difícil, mas tenho, não o meu ponto de vista, é a verdade. A política nunca foi vista. A gente apresenta para o povo uma politicagem: o dinheiro é maior, a gente compra e se vende. Quem tem direito e dever às vezes não tem nenhum valor. A política é aquela em que você senta na mesma mesa, onde todos têm direitos iguais. Foi isso que Jesus fez. Não tenho partido, faço parte de uma conjuntura que é a de Jesus Cristo. Se tiver um pão vamos partir. Os cristãos tinham tudo em comum e isso prevalece até hoje. A politicagem não mostra esse lado. Nós cristãos visamos o bem comum, pena que a escola, catequese, não forme crianças, adolescentes, jovens, adultos e pessoas que chegam na fase mais bela, como estou chegando, para ensinar isso. Amo política, pois amo Jesus.
OP: Em algum momento a politicagem não prevaleceu em Pedreiras?
RG: Pra ser honesta, nunca! De verdade, a gente sabe que a primeira mentira foi de Pedro Álvares Cabral. Teve a coragem de dizer que descobriu o Brasil, se os índios e seu moradores já estavam nessa terra. Nós já existíamos.
“Ele disse que descobriu aquilo que já estava feito, descoberto e nós passamos uma vida dizendo nas escolas que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil. Isso é muito triste”
Raimunda Gama
A escola está tentando com tanta dificuldade por não ter coragem de rasgar essa “verdade”. Podemos ver alguns traços, em certos momentos, que a igreja tenta, mas não na íntegra. Somos inseguros e até covardes, com medo de falar a verdade.
OP: Que conceitos traz sobre a vida? O que é a vida afinal?
RG: Um dom precioso, mas a palavra dom é um pouco abstrata. Você fica até sem entender. Gosto de viver minha vida intensamente, valorizando os mínimos detalhes. Seja chorando, sorrindo. Gosto de me alimentar bem. Não sei fazer a vida, a ganho de presente todo dia. Somos o ser mais belo, cada um individualmente, porque quando Deus nos teceu no ventre de nossa mãe, nos fez de maneira tão maravilhosa. Vida é viver intensamente os valores que ela traz para mim, na verdade, justiça e sinceridade. É dar para o outro aquilo que tenho: minha sabedoria, amizade, dores, alegrias, saudades.
OP: Cristo dividiu os pães e os peixes. Tanto tempo depois o mundo está repleto de famintos. Há algo de errado com os cristãos hoje em dia?
RG: Eles desconhecem a verdade, simplesmente isso. Domingo celebrávamos exatamente a multiplicação dos pães. Você vê, os cristãos tinham tudo em comum. Iam para as reuniões e no fim sobrava pão. Eles levavam para aqueles que não tinham ido. Hoje, como temos nossas geladeiras, socamos nela o que ficou ou jogamos no lixo, mas não damos para o outro. Somos egoístas. A gente senta à mesa já pensando em guardar aquilo que fica. Isso a gente desaprendeu por não conhecermos a palavra de Deus na íntegra. Que pena ouvirmos isso, mas não termos na vida a prática dessa vivência e convivência. É triste termos perdido o rumo do que Atos dos Apóstolos nos ensinou e tá aí, mas a gente não quer aprender. Parece que o egoísmo é melhor.

OP: O que Pedreiras representa para você?
RG: Pedreiras é a minha casa. O que quero na minha casa? O alimento, água, luz, meus direitos e deveres, o gás com o qual faço minha comida. Pedreiras é a minha grande casa comum, onde gostaria de ver todos nós tendo educação, moradia, trabalho e boa saúde. Numa situação dessa não temos bons hospitais e quando temos são particulares, caríssimos. Minha casa está sofrida, precisando ser rebocada, cuidada por uma grande conjuntura de irmãos.
OP: Você presenciou as duas quedas da ponte de Pedreiras. Que lembrança traz daqueles momentos?
RG: Na primeira vez estava na minha casa, rua Crescêncio Raposo. O padre Almecir morava em Lima Campos. Ele chegou dizendo: “Me disseram que a ponte está caindo”. Eu disse que era mentira. Fomos olhar. Já era mais de 17h30 da tarde. Havia um rapaz chamado João Martins que trabalhava no Supermercado Glória. Subimos lentamente procurando a queda da ponte. Quando passamos, aquela parte que já é terra firme a ponte caiu. Ouvimos o barulho. A gente não via mais nada, porque virou… Não gosto nem de pensar. Viemos pra casa por Bacabal. João caiu e nunca foi encontrado. A segunda vez foi no dia em que foram levantar a outra ponte. Fiquei do lado esquerdo, sentido Trizidela, num ponto alto. Olhava o guincho tentando levantar e dizia: “Isso vai cair!”. De repente a ponte caiu de novo. Muito triste aquele dia. Depois ela voltou e tá aí.
“Queiram ser ponte. Ela se deixa passar, não cobra se você agradece. Se coloca ali à tua disposição. Se quiser cuspir sobre ela, pisar nela, pode. Vamos ser ponte pra ver se as coisas melhoram”
Raimunda Gama
OP: A cultura de Pedreiras sempre esteve viva em você, de modo especial com as feiras de arte voltadas para o artesanato. Como esse talento foi se desenvolvendo?
RG: Quando completei sete anos aprendi a fazer ponto de cruz e tenho muito amor a esse trabalho. É o que mais me atrai de todos. Comecei a ensinar as meninas da minha comunidade, o Matadouro. Transformei-me numa costureira, comprei minha primeira máquina e no Clube de Mães aprendi bordar. Gostava de fazer campanha de filtro. Ainda não estava envolvida com igreja. Me transformei em artesã, não só pelo ponto de cruz. Fiz muitas feiras em Lima Campos, Independência, um meio de sobrevivência. Depois Ziroca foi morar no Matadouro. Ela sabia fazer tapete muito bem. Apareceu Antônia fazendo boneca, tapete. Justina, Cleide, Luizinha.
OP: Você ainda participa de feiras de arte?
RG: Sim! Nesse momento sabe do que gosto? Trabalhar com garrafas, fazer bonecas de pano. Gosto muito de juntar o lixo para transformá-lo em luxo. Nunca penso que tenho 80 anos e sim que estou viva e saudável. Gosto de trabalhar e expor o que sei fazer. Na igreja, quando o boi tá brincando, dançar, apesar da minha perna ser uma prótese, mas ainda me mexo muito bem. Tudo o que nos faz ter alegria e faz a vida florescer, disso eu gosto.

OP: De que forma você enxerga a cultura de Pedreiras hoje?
RG: Cresceu, não vamos negar. Houve a descoberta dos nossos poetas. Muitos cantores bons, como meu Josivan. Tenho uma paixão por ele muito grande. Gosto quando ele canta “O relógio”. Valorizou-se um pouco mais a mulher, no caso, as poetisas. Mas te falo honestamente. Para não ser tão ruim na nota, dou 50%. Ainda deixa muito a desejar. A gente não consegue fazer uma junção dessa criatividade que temos. Não quero menosprezar ninguém, mas vi um trabalho que foi bem valorizado no tempo do Dr. Pedro Barroso. Construímos nossa casa no Tiro de Guerra, para fazer as feiras de arte.
OP: Na edificação da igreja de São Pedro você esteve presente?
RG: Em minha infância, meu tio, chamado Arlindo Rodrigues, foi um dos fundadores da Colônia de Pescadores de Pedreiras. Como sobrinha dele sempre estava presente. Por isso me alegro, pois como mulher consegui trabalhar com homens. Não haviam mulheres na colônia. A procissão de São Pedro cresceu, hoje Sebasto é o presidente da colônia e sempre tivemos afinidade para trabalhar. Consegui, no tempo do padre Jacinto, a primeira missa celebrada por ele na capela do padroeiro dos pescadores. Desde então nunca mais deixamos, na festa de São Pedro, de fazer a missa. Hoje em dia já conseguimos ter aquele palco na rampa. Foi com Dr. Pedro Barroso que tivemos o direito de ser feriado no dia de São Pedro, celebrando sempre no dia 29 de junho. Este ano, apesar dessa doença que está espalhada, atingindo a humanidade, conseguimos celebrar todas as noites através das lives. O encerramento, achávamos que seria tímido, mas o povo não se conteve. Achava que esse ano não iria, mas Deus me deu esse direito de poder estar.
Por Joaquim Cantanhêde e Mayrla Frazão
O protagonismo das mulheres na igreja de Pedreiras tem sua representante maior com Raimunda Gama. Ela é um ícone da religião católica nas terras da princesa do Mearim. Devota de São Benedito e São Pedro sempre esteve disponível nessas duas grande festas cristãs da nossa cidade. Amada por uns, nem tanto por outros, é autêntica e fiel. Um grande exemplo para todos nós, carolcios pedreirenses.