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domingo, fevereiro 9, 2025

Mariquinhas morreu ontem

NILA MICHELE ESCREVE

Neste ano de Bicentenários — que celebram a adesão do Maranhão à independência e o nascimento do poeta Gonçalves Dias — notamos a exaltação midiática e histórica de figuras notáveis, sendo celebradas e homenageadas. Sem dúvida, seus nomes tiveram importância e seus feitos e registros históricos trazem grandes contribuições. No entanto, a História não é apenas composta por heróis e ídolos. 

Ela está repleta de personagens anônimos, pessoas humildes e oprimidas que travavam batalhas diárias nas quais, provavelmente, a única esperança de vitória era a sobrevivência. Embora, em muitos casos, até esta eram lhes roubadas.

Comumente, vemos como diversas pessoas foram invisibilizadas nas narrativas históricas devido à classe social, à cor, à sexualidade e ao gênero. Suas vidas passam despercebidas, quando não marginalizadas em suas próprias histórias. Neste mês de agosto, temos um emblemático exemplo.

No 14 de agosto de 2023, completaram-se exatos 150 anos do assassinato de Maria da Conceição de Carvalho. Mas quem é essa? Muitos podem se perguntar.

Maria foi mais uma jovem que, devido ao seu gênero, classe social e vulnerabilidade, não teve o direito de assumir o papel de protagonista nem mesmo na história do seu próprio assassinato. “O horroroso crime”, como os jornais noticiavam em 1873, foi registrado como o Crime do desembargador Pontes Visgueiro.

Visgueiro era um homem sexagenário, que, ao se apaixonar por uma jovem prostituta de aproximadamente 15 ou 16 anos, não admitiu a perda do poder que acreditava ter sobre ela. Assim, ele premeditou o crime, enganando-a para visitar sua residência, um sobrado azulejado localizado na rua São João, em São Luís – MA, onde, com a ajuda de um cúmplice, ela foi dopada, esfaqueada, esquartejada e colocada em um baú, que mandou enterrar no quintal de seu sobrado.

Seria mais um crime cuja posição social, o dinheiro e o gênero não permitiriam suspeitas, se não fosse pela insistência da mãe, irmã, comadres e amigas em não aceitarem o desaparecimento de Maria. 

Por quatro dias seguidos, elas não descansaram ou desistiram, procurando em todos os lugares, divulgando o desaparecimento e levantando suspeitas de que o desembargador havia causado algum dano à jovem. Suas ações foram tantas que conseguiram que o delegado investigasse.

Descoberto o crime, a vítima tornou-se a ré, culpada de seu próprio infortúnio e acusada de ser responsável por seduzir o “pobre desembargador”, que enlouqueceu por amor. Ela foi constantemente revitimizada, difamada e apelidada de DEVASSA.

Mariquinhas, como era conhecida, assim como tantas mulheres de hoje, vítimas de seus companheiros, possessivos que não aceitam perder o que consideram uma propriedade sua por direito, sofreu, mesmo de modo póstumo, todas as mazelas do julgamento social.

Iimagens de Angelo Agostini sobre o crime, publicadas na revista o Mosquito em 04 e 11 de outubro de 1873

No banco dos réus, Ponte Visgueiro chorou, assim como tantos homens abusadores e assassinos de hoje, que, ao serem presos, demonstram toda a sua tristeza e arrependimento. Contudo, é difícil dizer se as lágrimas são remorsos pela violência aplicada ou por ser condenado por ela.

Felizmente, contrariando a norma da época — em que a cor, o gênero e a classe social, garantiam os privilégios e inculpabilidade —, Pontes Visgueiro foi condenado. A pena, que deveria ser de morte, como determinava a legislação para esses crimes, foi, contudo, alterada para perpétua.

Apesar de ter sido condenado, a mídia do período e os historiadores que se seguiram consagraram o caso como “O crime do desembargador Pontes Visgueiros”. Ou seja, como já dissemos, até mesmo em seu próprio assassinato, Mariquinhas não tem o protagonismo de sua história.

Sendo assim, passados 150 anos, urge a necessidade de termos essa história revisitada, evidenciando não apenas Mariquinhas, mas também Theresa, Raymunda, Anna Rosa, Adozina, Clotildes, Angelica, Felicidade e outras tantas mulheres que junto a mãe da vítima, Luiza Sebastiana, lutaram para achá-la e prender o criminoso. 

Dessa forma, a partir delas, como pesquisadora de gênero, aspiro demonstrar que a passividade e subserviência atribuídas às mulheres do passado são apenas um “fetiche”, um feitiço criado e repetido até o convencimento, para manter as posições privilegiadas dos homens no poder. 

As mulheres sempre lutaram por si mesmas e por outras mulheres, foi apenas a historiografia de outrora, profundamente masculinizada e machista, que nos impediu, por longos anos, de enxergá-las e ouvi-las.

O crime do desembargador Visgueiro é o assassinato de Mariquinhas! E 150 anos depois, já passou da hora dele ser contado pela voz delas!

Quando as ouvimos, mesmos pelos filtros intermediários, pelas pistas e sinais que deixaram, as permanências do passado no presente são facilmente reconhecidas. 

Quantas mulheres, hoje, ainda são vítimas de feminicídio? 

Quantas ainda são violadas, esfaqueadas, esquartejadas físicas e moralmente? 

Assim como as amigas e familiares de Mariquinhas não podemos desistir, somos as herdeiras de suas vozes e por elas, não podemos ficar caladas. 

Por todas as Mariquinhas, Marianas e Marielles!

Seguiremos em frente, impedindo o esquecimento do passado e lutando pelo futuro de igualdade.

Por Nila Michele Bastos Santos, Historiadora, Psicopedagoga, Especialista em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda em História pela Universidade Estadual do Maranhão.  Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora do LEGIP – Laboratório de estudos em Gênero do Campus Pedreiras. 

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