OPINIÃO
Quando era menina, ainda bem pequena, começando o que era o antigo primário (hoje ensino fundamental menor), lembro-me de minha mãe contando de seu desejo de estudar. Ela, uma menina negra no interior da baixada maranhense, precisava andar muitos quilômetros no sol para chegar até a escola, mas mesmo com todas as dificuldades queria muito ir. Entretanto, meu avô não via a necessidade nem entendia tal desejo, mas diante da insistência e teimosia de minha mãe, ele permitiu, com uma condição: ela teria que ir acompanhada de pelo menos um de seus irmãos, que não tinham o mesmo desejo dela.
Depois de muita briga, meu avô obrigou, com ameaças de surras, o filho mais velho estudar e assim acompanhar minha mãe. Ela me contou rindo como ele reclamava, todos os dias, enquanto eles caminhavam mais de uma hora para chegar à escola. Acredito que ao me contar essa história ela queria me passar como eu era privilegiada por poder ir livremente à escola, mas lembro que pensei estranhamente: porque ela precisava ir com o irmão? Decidi que iria estudar para nenhuma menina precisar chorar ou se humilhar para poder fazer algo simples como estudar.
Já como uma adolescente cursei o ginásio (ensino fundamental maior) em uma escola só para meninas – na época o Colégio São Vicente de Paulo era o único na capital maranhense que ainda se mantinha como uma escola exclusiva para meninas. Infelizmente, como tal, não era incomum as estudantes serem alvo de “piadinhas” sexuais, que hoje sei serem o mais puro assédio, mas a época não conseguia entender o porquê de tais ações. Lembro-me, em especial, de um episódio em que um menino, em seus prováveis 12 anos, estar sentado próximo à saída do ônibus e a cada vez que uma menina com a farda do colégio descia, ele enumerava: uma lésbica, duas lésbicas, três lésbicas, uma puta, duas putas e assim sucessivamente.
Evidentemente não havia como revidar, pois se o fizesse perderíamos a parada e não entraríamos na escola. Na situação, lembro que pensei estranhamente o que levava um menino a se achar no direito de nos classificar e julgar apenas por nossa aparência e colégio onde estudávamos? Decidi que iria estudar para nenhuma menina ser menosprezada em sua aparência ou sexualidade e que nenhum menino se senta no direito de julgar ou classificar qualquer mulher simplesmente por ela ser mulher.
Quando era uma estudante universitária, meu namorado e eu resolvemos ir a uma conhecida pizzaria da cidade, era um dia comum de semana e o estabelecimento acabava de abrir, o que deixava o lugar completamente vazio. Fomos muito bem recebidos e logo nos deram o cardápio. Ao olhar as bebidas vi que eles tinham Cointreau –um de meus licores favoritos, conhecido por seu teor alcoólico de 40%. Meu namorado, que não bebia, escolheu um suco de laranja. Lembro claramente que ditei os pedidos ao garçom e que em menos de cinco minutos trouxe nosso pedido.
Ao nos servir, ele colocou o suco de laranja em minha frente e um copo de whisky na frente do meu namorado, derramando logo em seguida o licor sobre ele. Meu namorado, sem entender automaticamente, falou: eu não bebo isso, essa bebida é dela. O garçom me olhou incrédulo e eu simplesmente disse: eu sou uma mulher de bebidas quentes! Ele fez a troca e se retirou sem falar nada, de canto de olho observei como ele se dirigia aos outros garçons que disfarçadamente tentavam-nos olhar. Não sei dizer se a surpresa deles estava em eu beber uma bebida com 40% de álcool ou do meu namorado escolher um suco de laranja. Decidi que iria estudar para que nenhuma mulher ou homem servisse como objeto de espanto e descrédito simplesmente pela bebida que escolhe.
E assim fiz! Dediquei-me ao ensino e pesquisa não apenas da história das mulheres, que foram constantemente invisibilizadas pela historiografia machista, mas também das relações de gênero que ao longo das temporalidades tiveram o patriarcalismo, definindo papéis sociais desiguais, notoriamente, para garantir a manutenção de privilégios de quem detêm historicamente o poder. Acreditei que diante dos avanços dos movimentos pela igualdade de gênero, apesar do muito que ainda temos que transformar, alguns padrões e comportamentos começavam a se tornar obsoletos. A verdade é que tinha me iludido, até ser acordada da maneira mais simples e real possível: o cotidiano das relações de gênero.
Certo dia, já como uma professora de Instituto Federal, lotada na cidade de Pedreiras–Maranhão, sair para jantar com amigos. Coincidentemente naquele dia era a única mulher do grupo. Como de costume, escolhemos ir à Praça dos Jardim, que pessoalmente considero um importante centro de sociabilidade da sociedade pedreirense justamente por ser cercada de opções nas quais famílias e jovens podem confraternizar e escolher o que melhor lhes apetecem. Na ocasião resolvemos experimentar uma churrascaria (que hoje não existe mais) que acabará de inaugurar, afirmando fazer um verdadeiro churrasco malpassado. Fizemos nossos pedidos e apenas eu pedi a carne mal passada, enfatizando um “sangrando de preferência”. Ao trazer a carne, minha cara de decepção foi evidente. Eu pedi malpassado, falei, achei que era um engano. O garçom, descendo a carne em meu prato, simplesmente respondeu: mas mulher não gosta de carne malpassada!
Alguns dos meus amigos abaixaram a cabeça escondendo o riso, outro tocou no meu braço, como se estivesse pedindo calma, afinal meu histórico de feminista militante e de colocar “machos sem noção” em seus devidos lugares me precedia. Mas sinceramente, não sei se xinguei, se dei uma aula sobre gênero, se simplesmente perguntei se eu “comia com a boca ou a vagina” ou se fiz todas as opções anteriores. Sei apenas que aquilo me relembrou todas às vezes que nós mulheres somos subestimadas, temos nossos desejos negados ou somos violentadas em nossos corpos, mente e almas. Lembrou-me que não adianta os títulos de doutora, professora ou mestra. No fim das contas você ainda é vista como uma mulher e tratada como a sociedade te ensina a tratar as mulheres.
A verdade é que macro-mudanças não significam nada se não atingem os espaços sociais das micro-sociabilidade. Não adiantam leis que conclame o respeito ao corpo e aos direitos femininos se toda uma cultura permanece contestando e fazendo o contrário. Se celebridades, atletas e políticos incontestavelmente culpados continuam impunes, se meninos têm como exemplos de masculinidade indivíduos que usam de seu prestígio e dinheiro para diminuir sentenças de estupradores, se a vítima ainda é vista como culpada e quem está nos espaços de representatividades mantêm-se calados.
Ora, é apontando os erros, escancarando as feridas, punindo abusadores (famosos ou não), demonstrando que toda forma de discriminação e violência de gênero não será tolerada em nenhuma e qualquer esfera que poderemos mudar, ainda que no tempo da longa duração, essa cultura funesta do estupro e do patriarcado.
Para finalizar, deixo-lhes uma experiência bem recente e talvez uma das mais marcantes e brutais que já tive. Em meu doutorado estudo as violências de gênero sofridas por mulheres, centro-me em um crime atroz de feminicídio ocorrido em 1873. Durante o mês de março, em homenagem às mulheres, fui convidada por uma grande amiga, professora da escola pública da capital maranhense, para falar sobre minha pesquisa para seus alunos do 8º e 9º do ensino fundamental. Ela leciona em uma região onde os índices de criminalidade são altos e infelizmente os alunos estão familiarizados com situações de violência de facções criminosas e de violência doméstica.
Na palestra comparei o crime que estudava com as permanências dos feminicídios e outras violências contra as mulheres de hoje. Os alunos receberam muito bem o tema e participaram dos debates com questões e comentários. Ao terminar, enquanto eles saíam da sala e eu ficava arrumando minhas coisas, um aluno se aproximou de mim e timidamente disse querer me agradecer pela palestra. Não nego que fiquei surpresa, em geral, escuto parabenizações. Era a primeira vez que um aluno me agradecia por uma palestra. Peguei sua mão sorrindo e ele imediatamente continuou: quero-lhe agradecer por contar essa história, porque é igual a da minha mãe. Meu padrasto mandou matá-la quando eu era criança, ela levou dois tiros enquanto me segurava, um pegou de raspão em mim.
Ele pegou o celular e mostrou uma foto da mãe o segurando, como um bebê de provavelmente 3 anos. Segundo ele essa era a última foto que tiraram antes dela ser assassinada. Perguntei o que aconteceu com o criminoso e ele disse que o padrasto premeditou tudo e antes do ocorrido ele já tinha vendido a casa e o carro que tinham. Fugiu e nunca mais foi encontrado.
Abracei aquela criança, embargada e compadecida com a dor que ele carregava e que infelizmente nada que eu dissesse podia sanar. Tiramos uma foto e ele foi embora. Lembrei dos vários motivos que me levaram até minha jornada em defesa dos estudos de gênero e da luta por sua propagação e acrescentei mais alguns: para que nenhuma criança, menina ou menino, se reconheça nas palestras sobre as violências de gênero. Para nenhuma criança crescer sem a mãe levada por feminicídios. Para que a cultura do estupro, machista, misógina, homofóbica e patriarcal seja completa e absolutamente extinta da face da terra. Para podermos simplesmente ser quem somos.
Por Nila Michele Bastos Santos, Doutoranda em História na Universidade Estadual do Maranhão. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Historiadora. Psicopedagoga. Especialista em Formação de Professores. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora do LEGIP – Laboratório de estudos em Gênero do Campus Pedreiras.
📌 Observação: a opinião é de responsabilidade de seu autor e não representa um posicionamento do jornal O Pedreirense.