Por Nila Michele Bastos Santos
Há algumas semanas, em um reality de grande audiência, não por acaso nomeado como o dispositivo de vigilância e controle de uma sociedade distópica criada por George Orwell, uma participante negra proferiu: “Sou preta e vim como escravo sim, porque a gente era eficiente, porque a gente era bom. Quando falarem ‘você é preto’, responde: sou sim, sou preta mesmo!’”. Na tentativa de valorizar sua cor e raça, a participante Natália reproduz um discurso racista criado para justificar e minimizar as mazelas da Escravidão. Ela provavelmente não percebeu, mas esta estratégia da branquitude, que durante décadas, principalmente pós-escravidão, buscou relativizar, esconder e até mesmo inventar mecanismos educativos que abonassem as práticas escravistas e fortalecem-se a ideia de democracia racial e de solidariedade entre as raças.
A tese de Gilberto Freyre, tão divulgada em “Casa Grande e Senzala”, apaga a violência e a crueldade do processo de escravização e infelizmente é essa concepção que ainda mora no imaginário do nosso país.
Não houve ação do Estado, nem um projeto educacional, nem mesmo uma produção cultural de massa voltada para revelar as atrocidades cometidas, apontar os criminosos e principalmente despertar o repúdio e a revolta da população contra quem cometeu essas atrocidades como ocorreu, por exemplo, com o Holocausto Judeu.
Recentemente os apresentadores, Monark e Adrilles Jorge (e aqui os nomeio meramente para o conhecimento de quem são os apologistas) foram demitidos sumariamente de seus programas por serem associados a gestos e defesa do partido nazista. A população que “cancelou” e fez campanhas para suas punições entende, automaticamente, que é inadmissível exaltar o nazismo, pois suas práticas eugenistas foram um atentado à humanidade e, portanto, jamais podem se repetir. Logo, as empresas capitalistas que os patrocinavam não podiam, portanto, terem suas imagens associadas a eles.
Entretanto, basta uma busca simples na internet para perceber que os mesmos apresentadores também já estiveram envolvidos em práticas racistas e homofóbicas, então, porque não foram demitidos antes?
As atrocidades cometidas contra os judeus, durante o regime nazista, estão presentes em todos os livros didáticos de História, além de existirem diversos museus, filmes, livros, romances e a Hq’s sobre o assunto. Houve claramente uma ação pensada no coletivo para que gerações futuras possam ter a história contada pelas vítimas. O mesmo, infelizmente não aconteceu com a escravidão brasileira, foi preciso uma lei — promulgada apenas em 2003 — para que a História a cultura afro-brasileira fosse finalmente trabalhada nas escolas de educação básica e o estudo sobre a escravidão, enquanto conteúdo escolar, começasse a ser revisto.
A fala da História oficial da escravidão brasileira não é a da vítima, com isso nossa sociedade normalizou a escravidão e consequentemente diversas práticas racistas. E embora muito avanços já tenham ocorridos — inclusive em legislação — o espirito de impunidade ainda se faz presente em boa parte dos atos racistas denunciados.
O extermínio e exploração da população negra é uma realidade contemporânea e a escravidão não desapareceu: segundo estudos realizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1995 e final de 2020, quase 56 mil pessoas em situação análoga à escravidão foram libertadas em todo país. Em 2020, apesar das dificuldades da fiscalização em função da pandemia, foram identificados 112 casos de trabalho escravo no Brasil, que envolveram 1.390 pessoas e resultaram no resgate de 1.040 delas, inclusive as vítimas de escravidão doméstica (CPT, 2021, online).
Já em 2022, no fim de janeiro e início de fevereiro, foram veiculados nacionalmente as notícias de resgate de quatro mulheres em situações análogas à escravidão doméstica. Duas mulheres no Rio Grande do Norte (Natal e Mossoró), uma em Campina Grande – Paraíba e uma em Campo Bom – Rio Grande do Sul.
Em comum, todas tem o sequestro aberto e permitido ainda na infância, a promessa de estudos, as agressões físicas, verbais e psicológicas. Em um dos casos ainda temos o relato de abusos sexuais. A vítima tinha 12 anos e viveu escravizada por 32 por aquela que era a sua professora da 4º série e seu marido um pastor da Assembleia de Deus, por quem pesa a acusação do abuso sexual e que evidentemente é negada por seus advogados.
Impossível não lembrar do caso da mineira Madalena Giordano que aos 8 anos foi morar na casa da professora Maria das Graças Milagres Rigueira que a retirou da escola, a obrigou a realizar os trabalhos domésticos por décadas e tal qual um pertence a repassou (como presente ou herança) para seu filho Dalton César e sua esposa Valdirene, a fim desta realizar os mesmos serviços. Madalena foi escravizada desde a infância, durante 38 anos pela família Milagres Rigueira, na cidade de Patos de Minas (MG). Sendo inclusive casada arbitrariamente com o tio militar moribundo da família para que esta desfrutasse da pensão que ele deixava. Ao ser resgatada os fiscais do Ministério Público do Trabalho, que participaram da operação, relataram que ela ficava em um quarto apertado, sem ventilação e janela, além de ser submetida a maus tratos e abandono. Tal qual nos tempos do Imperador…
Aliás, é por conta de histórias mal contadas, verdades ocultadas, crueldades minimizadas, torturadores e escravistas exaltados como heróis nacionais que práticas assim ainda resistem, que o quarto da empregada continua com cara de senzala e o negro ainda é visto como escravo.
Vide o caso Moïse Kabagambe, congolês negro, de 24 anos espancado até a morte na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro por cobrar por seu salário. Seus assassinos, todos brancos, afirmam que o espancamento por 15 minutos não tinha a intenção de matar, e não foi racismo, por isso têm a “consciência tranquila”.
A escravidão brasileira precisa ser escancarada, seus mentores vistos como os algozes que foram, é preciso despertar a repulsa e o medo pelo ocorrido, para que nunca possa ser esquecido, para que nunca mais possa ocorrer, para que suas formas disfarçadas, hoje denominadas racismo, possam ser finalmente exterminadas tão longo tentem desapontar.
A escravidão da modernidade foi o Holocausto das populações negras africanas e afrodescendente.
Quem sabe assim, usando esse termo quem precisa entender. Entenda!
Asè!
[1] Historiadora, Psicopedagoga, Especialista em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora do LEGIP – Laboratório de estudos em Gênero do Campus Pedreiras. Instagram: @nilamichele