OPINIÃO
Não muito distante daqui, do lugar que faz sombra ao que escrevo, está o rio Mearim, um deus entre nós. O tempo e a história o estreitaram, mas sua essência vital permanece: continua sendo o mantenedor da vida dos aproximadamente 40 mil pedreirenses, habitantes do município que leva seu nome em um título que transcende fronteiras. A água que ferve na panela, que molha o riso infantil na piscina do clube e com a qual o mototaxista lava sua moto, vem do Mearim.
Nos morros, faz tempo que o “mar virou sertão”. A topografia somada à falta de investimento na unidade regional da CAEMA, desaguam na agonia de mães e pais de família. Uma amiga, residente no bairro do Goiabal, acorda na madrugada, para garantir que, durante o dia, tenham o mínimo. Sem saída no beco, os pedreirenses apelam a Deus, a santos e homens ‘milagreiros’, em meio à “seca urbana” que cai sobre nós feito praga nos tempos de Moisés.
Diz a Bíblia, no Velho Testamento, que ele fora posto à prova diante de um povo sedento. Por indicação divina, ao bater em uma rocha, viu água jorrar feito fulô em dias de sol. Num mundo completamente diferente dos tempos bíblicos, o povo sedento por água, pão, roupa, representatividade, igualdade, continua terceirizando a luta. Os que resistem, com ênfase, são também minorias, em um mar de queixas, súplicas e desamparados.
O caso CAEMA/ Pedreiras é complexo. Em tempos de campanha, políticos de diferentes grupos exploram a temática, prometendo mundos e fundos, numa agilidade desamparada de racionalidade. No âmbito do poder público, quem de fato por fazer cócegas no núcleo duro da companhia, também se acha num moroso sono sobre os ventos do litoral maranhense. O problema, que se arrasta por décadas, não foi olhado com atenção por inúmeros governadores do Maranhão. Flávio Dino embarcará em uma aventura que poderá conduzi-lo ao Senado; Brandão, herdará a questão. Nos ares eleitorais, de efetivo, nenhum sinal que indique atenção à “seca urbana” que se agrava em Pedreiras.
De São Luís para a Princesa do Mearim, vereadores e a gestão municipal esperneiam. É o máximo que podem fazer, além de medidas pontuais que visam mitigar os danos aos afetados, em diferentes partes da cidade. Um eco sem grandes efeitos que vai se perdendo no tempo. A formalidade do diálogo, até aqui, não dá frutos.
Nossos vulgos manda-chuvas se reversam na tentativa de nos impressionar. Pavão perde feio. Nada além de pirotecnia e disto estamos fartos. Nossa sede é por soluções palpáveis e duradouras. A cada crise, nossos “Severos Toledos” incorporam Sassá Mutema, personagens da trama global “O Salvador da Pátria”.
Em uma manhã de sábado de 2022, diante de um desabastecimento geral, a solução parcial de nossos problemas desfilava pelo coração da cidade, a avenida Rio Branco. Chegava o azulado novo flutuante e uma nova bomba para o sistema de abastecimento, em contraste com a estrutura sucateada, cujas imagens se espalhavam pelas redes sociais. “O problema da CAEMA vai ser muito atenuado ou praticamente resolvido com a colocação dessa balsa e das bombas novas”, disse Simplício, figura política que vinculava sua imagem à ação. Esta seria, segundo informações da CAEMA, a primeira etapa, estando a segunda prevista para fevereiro. Até hoje não houve, sequer rumores, de que um segundo flutuante e outra bomba tenha aberto caminho, feito carro alegórico em tempo de carnaval.
Nos primeiros meses do ano a crise da água se intensifica. Por sorte é tempo chuvoso. O povo dá boas-vindas, agradece a São Pedro, não importando a qualidade da água que caia das bicas. Pelas ruas da cidade a crise deixa cicatrizes: buracos que a CAEMA deixa para o poder público municipal tampar. Não dá qualquer retorno. O talão, esse não tarda. Um cano estourado, no “pé” da ponte Francisco Sá, provocou caos no trânsito e fez a parte baixa enfrentar o que as partes altas sentem na pele, há décadas.
É tempo de pré-campanha’ e nas crises os oportunistas [visionários, dirá o coach] encontram uma forma de se impor, vender uma imagem e com ela a aceitação pública. Nas redes sociais acham a manjedoura perfeita para fazerem eclodir os Moisés da contemporaneidade. Antes que cristãos me joguem na fogueira: refiro-me ao fator liderança que o personagem bíblico exercia. Os Moisés da atualidade não são santos, todo mundo sabe disso, mas procuram se portar como líderes de um povo, no caso, supostamente representando os pedreirense.
Na rádio, o ex-prefeito de Trizidela do Vale, Fred Maia, ensaia uma tentativa de liderar o povo num “motim” contra a CAEMA. Nossa “seca urbana” é a crise perfeita para que projete sua imagem, diante de um problema que atinge simpatizantes e desafetos. A falta d’água que impacta, com força, os mais pobres, neste recorte social, não têm lado e ele sabe disso. Tendo lugar cativo em um veículo de comunicação que recebe verbas públicas, se apropria de um espaço que ainda integra o imaginário popular e é determinante para o debate público local. Eis aí a capa perfeita para o super-herói. Será suficiente para ter votos expressivos em Pedreiras? Ou outros métodos serão reutilizados?
“A minha parte eu disse que iria fazer. Dei entrada [a primeira em mais de uma década exercendo cargo público] com Ação Civil Pública”, disse ele, apontando questões que envolvem a CAEMA, notadamente sabidas pelo povo de Pedreiras. Atípico, esta figura, sem cargo público oficial, se move da brutalidade, que lhe é caraterística, à uma imagem de liderança social, que não dura mais que uma entrevista. Nos bastidores essa roupagem tem lugar certo, o cabide.
A politicagem só encontra vaga, quando o senso de comunidade articulada se perde. A luta pela água, nessa terra, não é feita só de aproveitadores. Nossa história testemunha experiência marcadas pela participação popular, visando efetivar um direito fundamental.
Tanto o campo, quanto a cidade, já deram exemplos de mobilização coletiva, organizada pelo povo e em prol do povo. Em claro sinal da força que por vezes, este desconhece e em consequência não lança mão.
“Trabalhava no povoado Pacas e passava todo dia vendo aquele poço ali. Eles tinham feito um trabalho pela metade: cavaram e deixaram a água jorrando. Não fizeram a encanação e nem outra forma para que não derramasse água. Procurei algumas pessoas da comunidade, entre elas Dijé e seu Firmino. Eles já tinham falado com o poder público, com a empresa Hidrosonda, que deixou o trabalho incompleto. Dialogamos sobre o ‘Fóruns e Redes da Cidadania’, um movimento que tínhamos, pra gente começar a fazer algo em prol da água”, relembra o professor Jaime Ribeiro Lopes. Na ação de bloqueio da MA-381, que corta o povoado, foram incisivos, mobilizando diversos atores sociais, por fim, obtendo êxito sobre o que reivindicavam.
Na cidade, um certo dia, durante gestão de Totonho Chicote, o morro zangado, ‘marchou’ por parte da Avenida Rio Branco, fazendo ecoar o som das panelas e outros utensílios domésticos. A indignação, que os conduzia, era a falta d’água. Ousaram transgredir uma normalidade que ignora os dramas da periferia. Diante do Centro Administrativo e da sede do Ministério Público do Maranhão (MP-MA), ousaram falar de suas dores, do quanto a cotidiana ausência de água os machucava.
No recente e medíocre governo de Antônio França, a falta d’água também mobilizou. Sob o mantra “contra 60 anos de calamidade”, adultos, idosos, jovens e até crianças, ocuparam as vias de terra do povoado Olho D’água. Coletivamente, expuseram sua indignação, com gritos de ordem e poesia. Um constrangimento, somados a outros, responsáveis pela decomposição da imagem política do gestor, que como se sabe, não se reelegeu.
As exemplificações que cito se restringem à luta por água, mas a história local é marcada por tantas outras, em vários tempos e governos. A própria gestão Vanessa Maia, bem quista aos olhos de parte da população, já se deparou com a força dos pedreirenses unidos, ocupando as ruas. Me parece claro, que só assim, em comunidade, poderemos forçar as engrenagens de um sistema que não prioriza os mais pobres.
Nos parece cômodo terceirizar lutas. Eis um dos efeitos colaterais da democracia representativa: supor que delegar representes basta. É imaginar uma linha reta num caos social. A ‘política’ é farta de meandros. Os que nos representam, assim agem quando lhes convém, quando nossos interesses não colidem com os seus. Hoje, alguns ‘lutam por água’, porque isso lhes renderá dividendos eleitorais.
Qual a saída? Ela sempre existiu: o povo caminhando numa vereda comum, aliando saberes, solidariedade e formação política. Enquanto isso não ocorrer, a CAEMA será mais forte que os milhares de habitantes dependentes de seu abastecimento, em um conflito de cada um por si.
Antes de ir, evoco dois pontos trazidos por Paulo Freire em “Pedagogia do Oprimido”:
“Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção”. “Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado – é a ‘pedagogia do oprimido. ’”