Em 14 de novembro de 1876, era assassinado o menino escravo, Inocêncio, apenas 8 anos de idade, com ferimentos generalizados: três contusões na cabeça, derramamento cerebral, feridas em todos os membros do corpo e até sinais de ruptura do reto, provocada (ao que se disse), pela introdução de um garfo no ânus.
A acusada? Dona Anna Rosa Viana Ribeiro, 40 anos, casada com o médico Carlos Fernando Ribeiro, chefe do Partido Liberal da Província do Maranhão, que chegou a exercer a presidência da Província e foi agraciado com o título de Barão do Grajaú. Mesmo com toda sua notoriedade e por força de um jovem Promotor, a Baronesa do Grajaú foi levada ao banco dos réus. Anna Rosa Ribeiro compareceu à sessão vestida completamente de seda preta e com véu de crepe. Acompanhavam-na dezoito damas, vestidas de luto, em sinal de protesto, afinal que ultraje se fazia à respeitosa baronesa, com tamanha humilhação apenas por maus-tratos ou morte eventual de um negrinho escravo que lhe pertencia. A decisão seria, porém, como era próprio do tempo: a absolvição unânime.
Passados 144 anos temos novamente uma “respeitável senhora”, casada com o prefeito de Tamandaré, acusada pela morte de uma criança negra de 5 anos de idade, filho de SUA empregada. Ela não o apunhalou a garfadas, não… Ela simplesmente abriu a porta de casa, deixou-o sozinho em um elevador e permitiu que perambulasse só, em busca da mãe até cair de uma altura de 35 metros! A nossa primeira dama de Tamandaré estava fazendo as unhas, não podia olhar a criança. Mas onde estava mãe? Vocês podem perguntar.
A mãe negra e empregada doméstica, obrigada a trabalhar em plena pandemia em uma casa com infectados, tinha ido passear com a cadela da primeira dama, pois isso fazia parte de seus afazeres. Presa, tal qual a baronesa de Grajaú, a Primeira Dama de Tamandaré pagou fiança de 20 mil reais e responderá ao processo em liberdade.
A Baronesa do Grajaú vestiu-se de negro, em luto pelo ultraje que sofreu. A primeira dama do Tamandaré, sempre glamourosa e extremamente maquiada nas redes sociais, despiu-se de suas joias, segurava um terço nas mãos, abdicou da maquiagem e vestiu-se de branco – a convencionada cor da pureza – para dar uma entrevista em rede nacional contando sua versão dos fatos e colocando toda a sua dor pelo “acidente”.
O interessante neste fato é que foi justamente a dor da acusada que foi posta em pauta. A dor da mãe e da avó negras não teve o mesmo espaço para uma entrevista tão meticulosa em horário nobre. Aliás, se fosse o contrário? Se fosse uma mulher negra e pobre que negligenciasse uma criança teríamos a mesma realidade?
A delegacia que tomou o depoimento da acusada, 28 dias depois, abriu duas horas mais cedo que seu expediente normal: que se inicia às oito horas da manhã. Acompanhada de seus advogados e esposo, a primeira dama se preservou dos possíveis ataques que poderia sofrer da opinião pública, o mesmo trato não foi dado à mãe de Miguel.
Há 144 anos tivemos uma absolvição unânime: a baronesa não só saiu ilesa de seu crime, como pouco mais de um ano depois seu marido, Dr. Carlos Fernandes Ribeiro, Barão de Grajaú, assumiu interinamente a presidência da Província.
Dentre seus primeiros atos, como então presidente, demitiu sumariamente o jovem idealista promotor Celso da Cunha Magalhães, que ousou colocar sua esposa no banco dos réus.
Em uma sociedade escravista e habitualmente permissiva com a elite, a desigualdade social do negro e a tolerância com todas as formas de violência contra ele era uma realidade que Celso de Cunha não conseguiu superar.
Essa sociedade escravista e patriarcalista é a ancestral da que temos hoje: uma sociedade cúmplice do RACISMO, uma elite social perversa capaz de sustentar um governo que pratica abertamente necropolíticas contra as populações negras e indígenas.
As resistências do passado são experiências que precisamos tomar como exemplos. Celso da Cunha Magalhães foi consagrado, por lei, como patrono do Ministério Público do Maranhão, justamente pela defesa dos ideais sociais e humanos da ordem pública e da democracia. Esperamos que o Ministério Público do Recife consiga realizar a justiça que não foi feita no Maranhão do século XIX.
Esperemos que dessa vez os privilégios elitistas e brancos não vençam, para tanto precisamos acompanhar o caso e tratá-lo como de fato o é: mais um caso em que o racismo mata.
Por Nila Michele Bastos Santos – Historiadora, psicopedagoga, especialista em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora Geral do NEABI – IFMA / Campus Pedreiras e do LEGIP – Laboratório de Estudos em Gênero do Campus Pedreiras
Referências:
PINTO. Rui Cavallin. O promotor e o crime da Baronesa. Disponível em: http://memorial.mppr.mp.br/pagina-123.html
Daí a importância da História! O passado existe pq existe o presente. E este nos faz pensar nas permanências de um passado elitista/racista cheios de privilégios no nosso país. Eis aí uma breve reflexão sobre essa estrutura cruelmente desigual da nossa cultura e sociedade. Quando eu soube dessa tragédia, eu pensei no caso da Baronesa do Grajaú da qui do Maranhão, inclusive interliguei com o nome aristocrático da primeira dama negligente do caso do Miguel. Mas você minha amiga, foi mais longe! Não só pensou e fez as conexões como refletiu e materializou nesse texto. Parabéns, Nila!! Você me dá muito orgulho!!