Em agosto de 1873 um caso abalou a sociedade maranhense, o então desembargador José Cândido Pontes Visgueiro, 62 anos, envolvido afetivamente com Maria da Conceição, conhecida pela alcunha de Mariquinha, uma jovem lavadeira — provável prostituta — de 15 anos de idade. Entretanto, não é a diferença de idade que choca a sociedade, a prática de homens muito mais velhos se envolverem com adolescente infelizmente fazia parte do cotidiano da época. O escândalo foi o assassinato, com requintes de crueldade, que o desembargador cometeu.
Incapaz de aceitar o término do relacionamento, ou ainda por não ter a exclusividade dos “favores sexuais” da jovem, Pontes Visgueiro chama Mariquinha em sua casa e a leva, sob a desculpa de dar-lhe um presente, à o seu escritório. Lá, junto com seu cúmplice/empregado Guilhermino, imobilizaram Mariquinha para o desembargador a apunhalar repetidas vezes com uma faca. Não contente com o assassinato, o corpo foi ainda esquartejado e colocado em um baú para ser enterrado no quintal.
Talvez se não fosse a ação da mãe e das amigas, prováveis companheiras de lida, fazendo uma movimentação em busca de Mariquinha e depois para culpar o criminoso Pontes Visgueiro teria saído incólume, mas não foi assim, as mulheres exigiram uma atitude e o desembargador foi para o banco dos Réus. Durante o julgamento, o advogado de defesa, um dos melhores advogados da época, pautou toda sua alegação na ideia de um crime passional, pelo qual o réu — um homem exemplar na sociedade — perdeu momentaneamente a razão devido às ações da própria Mariquinha.
A vítima, como se não bastasse ser assassinada, foi desmerecida, humilhada e difamada, fora ela que procurou seu infortúnio. Ele, o homem, era a vítima no esquema sedutor da Mulher — Ela era a verdadeira culpada! Culpada pelo simples fato de ser mulher.
Contudo, tanto os jornais quanto a opinião pública — que não se restringia, agora, somente a sociedade maranhense, uma vez que o caso foi noticiado até na capital — exigiam a punição, não tanto pelo feminicídio[i], mas para acabar com os privilégios da Elite que se safavam de seus crimes apenas devido seu status social. E talvez, por conta desse contexto de luta contra privilégios, Pontes Visgueiro foi condenado, não a pena máxima que seria a forca, mas ao encarceramento.
O julgamento poderia ter ficado como mais um processo do século XIX se em 1934 ele não tivesse sido retomado por Evaristo de Moraes — famoso jurista brasileiro — que resolveu escrever sobre o caso que para ele teria sido um terrível ERRO JUDICIÁRIO, pois o pobre Desembargador foi condenado injustamente.
Novamente Mariquinha é humilhada e difamada, agora a luz das pseudociências da medicina legal que além de racista, também criava os argumentos críveis para justificar os atos violentos dos homens sobre as mulheres: os crimes de paixão. Afinal era necessário rever o 1º veredito e mostrar que é a mulher a culpada por provocar os homens.
Passado mais um século da revisão do crime e a condenação póstuma — ainda que apenas literária — de Mariquinha pela violência que sofreu. Um novo caso e um novo advogado retoma o mesmo discurso machista, misógino e preconceituoso para atacar uma jovem mulher pela violência que sofreu.
Novamente, dois séculos depois do crime do desembargador Pontes Visgueiro, temos uma nova Mariquinha — Mariana agora — não assassinada, mas estuprada; não esquartejada, mas dilacerada emocionalmente; não enterrada em um baú no quintal do homem, mas soterrada de palavras humilhantes frente aos outros homens que estariam ali para defendê-la!
Mariana Ferrer foi violentada não apenas por André de Camargo Aranha, mas pelo advogado de defesa dele, que a humilhou e a torturou psicologicamente, que disse implicitamente que ela procurou pelo que aconteceu! Mariana foi violentada pelo promotor que deveria se levantar e protestar contra as falas completamente agressivas do seu colega! Mariana foi novamente violentada pela omissão do juiz que permitiu que tais crimes ocorressem debaixo de seus olhos e que se resignou a pedir para a vítima beber água para se acalmar! Torturando-a novamente, ao insinuar que a vítima estava descontrolada.
Um estuprador, um violador, um cúmplice e um omisso… o que eles têm em comum? O gênero! São Homens!
E diante desse tão poderoso status parece que provas e testemunhas nada valem e tipificações que não existiam nem no século XIX passam a existir dada necessidade da proteção do Poder masculino. Juntos eles subverteram os papeis de vítima e réu e inventam, a sua revelia, uma nova jurisprudência “Estupro Culposo” (que não existe) !
Em uma sociedade escravista, elitista, patriarcal e habitualmente pautada nas relações de soberania masculina, como foi a sociedade do século XIX, um punhado de mulheres pobres, mães e companheiras de labuta tiveram a coragem e a perseverança de lutar por justiça! Viraram a opinião pública contra o criminoso e encurralaram o judiciário a proceder como mandava a lei. E ainda que no século XX os homens quisessem reparar o erro de dá a vitórias a estas mulheres, o tempo não permitiu que lhes fosse arrancada.
Hoje, igualmente é preciso que nós, mulheres, nos unamos, que levantemos nossas bandeiras, que alcemos nossas vozes, para novamente virar a opinião pública contra o verdadeiro culpado, encurralar o judiciário a fazer a apropriada justiça e não a que lhes convém…
A sociedade que temos hoje, machista, racista, misógina e homofóbica é a herdeira da sociedade oitocentista, mas nós, mulheres também somos as herdeiras daquelas que a despeito das falsas naturalizações RESISTIRAM!
Portanto, sigamos na luta, por nenhuma a menos! Por justiça para Marianas, Marieles e Mariquinhas!
Por IGUALDADE e RESPEITO!
Por Nila Michele Bastos Santos, Historiadora, Psicopedagoga, Especialista em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora Geraldo NEABI – IFMA / Campus Pedreiras e do LEGIP – Laboratório de estudos em Gênero do Campus Pedreiras. Instagram: @nilamichele
[i] O termo não existia na época e foi colocado aqui apenas para ambientar o leitor com as correlações entre o passado e a contemporaneidade.