Porque a morte de Chadwick Boseman é tão dolorosa para nós?
Simplesmente por que Chadwick encarnou, ou melhor, deu vida, rosto e voz a um dos personagens mais representativos para a cultura negra, afrofuturista, dos últimos tempos: o Pantera Negra, rei T-Chala de Wakanda, E Chad, como era chamado pelos mais próximos, sabia o peso desse papel, sabia a necessidade de um filme assim, um filme que vem para coroar um movimento que vem lutando desde a década de 1960: o afrofuturismo, que simplesmente luta por mostrar um futuro em que o Negro existe! Um futuro em que ancestralidade e futurismo caminham juntos simbioticamente. Um Futuro Negro, como deve ser!
Há mais ou menos uns 15 anos, em que não tinha noção do movimento afrofuturista, quando eu trabalhava em uma escola municipal da zona rural de São Luís, na extinta 5º série, apresentava um projeto sobre Heróis Negros da História. Na época meu objetivo era mostrar o ocultamento de personalidades negras importantes para nossa história. Iniciei perguntando sobre quem poderia dar exemplos de heróis, como eu esperava veio uma onda de “super-homem”, “Batman”, “Mulher Maravilha”, “Homem-Aranha”, etc., mas quando eu perguntei, e os heróis Negros?
Um aluno negro me respondeu na lata, como se não fosse nada. “Não tem herói preto, professora!”.
Chocada quis revidar: claro que tem! Eu já era uma consumidora feroz de Hq’s e sair elencando uma lista (infelizmente não tão grande quanto gostaria), têm o Lanterna Verde, John Stewart, tem a Tempestade e tem o Pantera Negra. Ele simplesmente levantou os ombros e como se eu estivesse inventando, disse: nunca ouvir falar…
Naquele momento, lembrei-me de onde estava e que de fato, os super-heróis que eu citei só eram de conhecimento de um seleto grupo que tinha acesso e podia pagar pelas Hq’s americanas. Os super-heróis fantasiosos e ficcionais dos meus alunos eram os que eles viam nos desenhos e filmes que passavam na TV aberta e nestes não haviam heróis negros.
Na época eu tentei reverter a situação e apresentar heróis negros reais, como o Dragão do Mar, que com sua jangada enfrentou os traficantes de escravos para impedir que os escravizados no Ceará fossem vendidos para fora da província, pois já se tramitava a ideia de liberdade para os escravos da região, o que de fato aconteceu 4 anos antes da lei Áurea.
Devo confessar que “enfeitei muito a história”, brincando com os imaginários deles, fingindo como o Dragão do Mar falava, levantava seu remo e liderava os demais jangadeiros a não atravessar escravizados para os barcos de traficantes. Meus alunos, crianças entre 11 e 12 anos, vibravam felizes com a história. No final eu perguntei ao meu aluno de antes o que ele achou da história e ele me respondeu: que nome massa, professora! Dragão do Mar.…
Ora, o racismo é tão cruel, que imprime marcas que atacam até os sonhos e fantasias das crianças, rouba-lhes as possibilidades de se encontrar em um universo em que eles podem ser heróis mágicos e com superpoderes. Ao não produzir representatividades ficcional e fantasiosas é como se afirmassem que não existem negros nestes mundos e mais que isso, não há espaços para eles nessas ficções.
A alta tecnologia das ficções cientificas, os mundos futuristas e desenvolvidos, a fantasia fantástica das magias e superpoderes são lugares de brancos e só de brancos… Ou assim era, até os movimentos negros abrirem espaços e gritar: nós existimos! E também queremos um futuro, nós também queremos representatividade, pois ela importa!
Ora, por que temos que ir ao cinema e sempre ver os negros em papeis de drogados, traficantes ou vilões? Por que sempre temos que ver papeis em que as personagens negras não têm pais, ou estes são pais desajustados, violentos e inaptos? Por que sempre temos que ver personagens negros apenas em um mundo de violência em que para galgar o sucesso devém fugir, lutar e se sacrificar? Porque sempre temos que ver a miséria e desolação humana relegada aos personagens negros? Porque o mundo da ficção futurista e fantasia fantástica é fechado às personagens negras?
Entendam, não estou falando que os temas sobre o preconceito, racismo, marginalização e extermínio não devam ser tocados, ao contrário, essas questões só serão extintas quando realmente não mais existirem na realidade. Entretanto, o mundo do imaginário e das artes é vasto e amplo, ele evoca principalmente sonhos e desejos. Ele traz representações de desejos e por vezes é através deles que realizamos sonhos fantasiosos e extra-humanos.
Enquanto criança desejamos voar, subir pelos prédios, destruir paredes e esses desejos e sonhos de fantasias são saciados quando vemos a figura do super-herói, com superpoderes, com superinteligência… a ficção e fantasia põem em exercício a representação gráfica do que não se pode realizar na realidade.
Mas quando essas representações não se parecem conosco? Quando não tem nossa cor? Nossos cabelos? Quando essas representações têm embates contra vilões que, estes sim, são parecidos conosco? Como eu me deparo enquanto isso? Será que nem nos meus sonhos eu posso ter esses poderes? Será que até nos sonhos minha realidade deve ser estereotipada?
Ao recusar papeis que apenas reforçam os estereótipos de negras e negras, Chadwick Boseman apresentava sua responsabilidade como artista, uma responsabilidade que sabe que enquanto uma celebridade conhecida mundialmente, o que ele faz ecoa e ele se torna representatividade.
E representatividade significa reforçar sonhos e demonstrar possibilidades. Ao assumir o manto do Pantera Negra no Cinema, Chadwick Boseman sabia perfeitamente o que estava destinado a ele. Ele tornou-se o rosto de uma personagem forte, um rei, poderoso, sábio e futurista. Mostrando a todos a força do movimento afrofuturista, mostrando que é possível sim fazer um futuro em que negros existam, que possuem famílias amorosas e preocupadas, amigos verdadeiros, em que a honra e ancestralidade não são impedimentos para a evolução tecnológica.
Chad, não foi o Pantera Negra só no cinema, ele foi além. Ele carregou o manto do rei T-Chala, para fora da fantasia. Ele visitou crianças com câncer, falando como elas também podiam ser heróis, ele fez discursos em formaturas aconselhando jovens negros a não aceitar os estereótipos impostos, a não reproduzir os preconceitos estabelecidos. Ele soube escolher seus papeis para que estes possam inspirar.
Em momento algum ele fala que ser negro ou negra em um mundo que insiste em não dá oportunidades aos talentos negros é fácil, ao contrário ao receber o prêmio na SAG Awards, Boseman fala o quão difícil é ser “a cauda e não a cabeça”, “estar por baixo e não por cima” simplesmente porque as oportunidades são propositalmente negadas.
Ser representatividade não é fácil! Ser uma representatividade Negra Afrofuturista é mais difícil ainda, não apenas porque os espaços são limitados, mas por carregar as esperanças e os desejos de tantas pessoas marginalizadas por sua cor, raça/etnia. Mas alguém precisa aceitar a missão, alguém como Chadwick Boseman que mostrou o quão especial nós, negras e negros, somos e quão ainda podemos fazer.
Perde-lo, dói, mas seu legado foi eternizado, o que nos resta é agradecer. Gratidão, Chad por não desistir, por nos ajudar acreditar que é possível sonhar com um futuro mágico. E assim como ele afirmou:
“NOS PRECISAMOS EXEMPLIFICAR O MUNDO QUE QUEREMOS TER!”
Sim, majestade, nós PRECISAMOS EXEMPLIFICAR O MUNDO QUE PODEMOS TER!
Um futuro como Wakanda: Belo, Poderoso e Negro!
“Que nossos ancestrais o recebam com a festa que mereces, pois agora pertence a este panteão”Ubuntu*.
Por Nila Michele Bastos Santos – Historiadora, psicopedagoga, especialista em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Professora do Instituto Federal do Maranhão IFMA – Campus Pedreiras. Coordenadora Geral do NEABI – IFMA / Campus Pedreiras e do LEGIP – Laboratório de Estudos em Gênero do Campus Pedreiras
* Palavra de origem banto que expressa a filosofia africana da ancestralidade, de maneira mais simples significa “Sou o que sou pelo que nós somos”
Reflexão linda, companheira!
Quem dera pudéssemos, com mais frequência, prestigiar e enaltecer a cultura afrodiaspórica e filosofia africana.
Infelizmente, parece mesmo que as pessoas são apenas impactadas e levadas a reflexão nestes momentos, quando personalidades marcantes e emblemáticas deixam de estar entre nós.
Neste tempo pandêmico, de exceção, temos visto e presenciado a midiatização e certo agravamento das desigualdades de várias ordens, especialmente, ao que refere às relações étnico-raciais, onde o genocídio da população negra é ainda muito mais marcante.
Na esperança que este e outros “Chad’s” da vida possam se levantar e fazer coro contra a todo tipo de discriminação e preconceito.
Com a esperança que assim como o ator teve o incentivo e oportunidade para mostrar o seu talento e potencialidade, que outras meninas e meninos, possam também serem visibilizados e enxergados para além da cor de sua pele ou qualquer outro traço fenotípico.
E eu acredito também que isso seja possível, sobretudo, por meio da educação. Que continuemos nessa luta, companheira Nila e demais companheiros.
Que não desistamos de criar novas formas de representação e promover a vocalização de luta e existência dos grupos sociais marginalizados.
E que o sentido mais profundo do “Wakanda forever” permaneça entre nós vividamente, sempre!