“’Cê loco! Não sei o que é que aconteceu
No tribunal virtual geral pensa que é Deus
Cuidam da vida dos outros esquecendo do seu
Mas dos problemas da minha vida só quem sabe sou eu
Quem falou, quem bebeu, quem surtou, quem morreu
Quem casou, separou, quem chorou, se vendeu
Se a roupa é curta, tá mostrando e se cobrir se escondeu
Se engordou, se emagreceu querem saber o que comeu
Zé povinho digital é esse o seu nome
Olho gordo virtual que xinga e depois some
Se alimenta de curtidas e tá sempre com fome
Nem cirurgia desgruda sua mão do smartphone…”
Os versos retirados da música “Mais Like”, do rapper Projota, descrevem a tal chamada “cultura do cancelamento” em tempos de redes sociais. Cuidado! O cancelamento vem.
Considerado o termo do ano de 2019 pelo Dicionário Macquarie, a “cultura do cancelamento” vem ultimamente, sendo potencialmente utilizada para um linchamento virtual. Indo contra aos que muitos pensam, esse comportamento tem surgimento dentro dos ambientes acadêmicos nos Estados Unidos em decorrência de cobranças feitas pelos alunos a respeito de certas atitudes de professores e com questionamentos sociais, como racismo, LGBTQIA+fobia, machismo, sexismo, dentre outras. E com a popularização das redes sociais, migrou-se também para o digital. No entanto, ao longo do percurso a prática foi se incorporando em um verdadeiro maniqueísmo porque é transformando em um duelo entre bem versus mal, mocinha e vilão.
Em dias de Big Brother Brasil 21, da Rede Globo, os assuntos nas redes sociais são pautados com a decorrência de acontecimentos dentro do reality show, sendo um grande produtor simbólico, que contribui para produção de subjetividades e interpelando os sujeitos que assistem. Desta forma, há uma necessidade de enxergá-lo além de um simples show de entretenimento, mas uma espécie de laboratório social ou um reflexo da nossa sociedade. E desde a sua estreia, o BBB 21 vem potencializando o debate sobre o conceito “cancelamento” ou “cultura do cancelamento”. Isso porque os ânimos dentro e fora da casa estão à flor da pele. Karol Conká, Lumena, Lucas e Fiuk estão na mira dos canceladores aqui fora quando os quatros foram os canceladores na casa.
Levando para um olhar sociológico e filosófico, podemos nos aprofundar mais nesse fenômeno da “cultura do cancelamento”. Analisando por um viés das relações de poder dos estudos de Michel Foucault, compreendemos que o ato de cancelar pode ser uma consequência da estrutura do poder. Para o francês, as nossas relações são atravessadas pelas microfísicas do poder, ou seja, o poder transita em todo o tecido social como uma espécie de rede. O poder não se localiza nos indivíduos, mas na rede (saberes e discursos). Com isso, o cancelamento potencializa e é potencializado nessa constante vigília e punição através do conteúdo do discurso do cancelado. Logo, a “cultura do cancelamento” pode colaborar para o estímulo do medo perante as pessoas, que acabam “pisando em ovos” para não serem as próximas vítimas.
Seguindo essa linha de raciocínio, recorremos aos pensamentos de Friedrich Nietzsche para complementar quando enxergamos que a “cultura do cancelamento” só possui um grande efeito pois somos estruturados em um rebanho porque condicionamos o nosso eu para atender as expectativas de algo ditado por um pastor. Em outras palavras, vivemos para ser guiados, assim, anulamos as nossas vontades. E quando isso se passa dentro de uma casa com diversas câmeras, o efeito manada fica mais evidente. Explicamos isso também com uma teoria chamada de “espiral do silêncio”, bastante estudada nos estudos de comunicação, que nada mais é do que quando um sujeito tem uma opinião A e o restante do grupo tem uma opinião B, e pelo receio de ficar isolado tende a descartar a sua própria opinião para acatar a da maioria. O famoso maria vai com as outras!
Acompanhando o Twitter, principal espaço de interatividade do programa, percebemos que há um ruído na comunicação, por consequência, colaborando para uma substituição do debate para o um aniquilamento de vozes. O processo dialético se faz por uma tese, antítese e síntese. Em outras palavras, discordar faz parte do debate, mas isso não pode ser sinônimo de “cancelar” alguém disfarçado de “minha opinião”, que também acaba camuflando e naturalizando traços preconceituosos.
Com isso, o objetivo deste artigo de opinião não é ditar a forma como você tem que pensar, mas provocar questionamentos e contribuir para momentos de reflexões que busquem sair do senso comum ou da superficialidade da era da informação. Portanto, entendemos que precisamos ir além de um simples ato de “cancelar” e começar a compreender o contexto e os modus operandi daquela determinada situação do cancelado. Compreensão é diferente de justificação. Claro, que aqui se faz referência para casos que não se enquadrem em crimes. E para concluir, evoco mais uma vez a pergunta da atriz Ingrid Guimarães: pelo que as pessoas te cancelariam se te assistissem 24h?
Por: Thyago Myron – jornalista pelo Centro Universitário de Ciências e Tecnologia do Maranhão (UNIFACEMA).