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sexta-feira, outubro 4, 2024

O vaqueiro, a onça e o sermão

História de alpendre


Nada de horário marcado, mas chegar quando Samuel Araújo desapeava da burra foi uma alegria. Fazia tempo que não o via com demora. Quase sempre na rua, ele indo, eu vindo, e nesse vai e vem uma breve saudação.

A camisa, que um dia foi branca, recita as secas veredas sob o sol de agosto. A pele do vaqueiro Samuel reconhece esses dias. Passou a noite no mato. “O tatu ficou no buraco”, argumenta, ao ser inquirido pela irmã. Ele, que não trouxe bicho do mato, ao voltar para casa se depara com uma onça e ela tem nome: Alciene, sua mãe. Domador de bicho brabo, escolhe o silêncio, enquanto tira a bota. Ela debulha o dicionário, ao queixar-se de que ele não teria ido para escola. Alciene é implacável. “Tem que ser assim Joaquim”, diz, lembrando o filho de suas responsabilidades.

Samuel é tão bom vaqueiro quanto educado e sabido. É de fazer inveja ao diploma. Se de um lado traz a coragem indispensável às lidas do campo – mais ainda quando envolve gado- do outro oferta aguçado bom humor. Não falta, nem mesmo diante das comidas de rabo de sua mãe.

Vaqueiro Samuel Araújo (Foto: Joaquim Cantanhêde)

Vistoso, já há quem tenha se engraçado por ele. Em meio ao burburinho digo: “cheirar um cangote não adoece ninguém”. Ele sorri, em sutil concordância.

Entre prosas, sermões e goles de café, Samuel se permite fotografar. Uma pausa nas broncas, mas dura pouco.

Na peleja entre o vaqueiro e a onça sou aquele que aprende. Como velho amigo, entendo Alciene. Nada mais pedagógico que as marcas trazidas por ela na face. Sua lida é farta. Certamente almeja para o filho mais que as estradas áridas de agosto.

Samuel, quando monta a burra, quase todo dia, faz a escolha mais importante da sua vida. A aparência com o pai, seu Pedro, vai além da fronte. É sina e eu desconheço palavra mais forte e mais bonita. Se na escola vai aprender os tais pronomes, raiz quadrada e o verbo “to be”, reconhece na lida o dialeto do campo, os cacoetes dos bichos, a poesia dos caboclos.

Por mais corajoso que seja, Samuel sabe que abaixo do alpendre que nos protege do sol, quem canta de galo, ou melhor, de onça, é sua mãe.

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Joaquim Cantanhêde
Joaquim Cantanhêdehttp://www.opedreirense.com.br
Jornalista formado pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
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