História de alpendre
Nada de horário marcado, mas chegar quando Samuel Araújo desapeava da burra foi uma alegria. Fazia tempo que não o via com demora. Quase sempre na rua, ele indo, eu vindo, e nesse vai e vem uma breve saudação.
A camisa, que um dia foi branca, recita as secas veredas sob o sol de agosto. A pele do vaqueiro Samuel reconhece esses dias. Passou a noite no mato. “O tatu ficou no buraco”, argumenta, ao ser inquirido pela irmã. Ele, que não trouxe bicho do mato, ao voltar para casa se depara com uma onça e ela tem nome: Alciene, sua mãe. Domador de bicho brabo, escolhe o silêncio, enquanto tira a bota. Ela debulha o dicionário, ao queixar-se de que ele não teria ido para escola. Alciene é implacável. “Tem que ser assim Joaquim”, diz, lembrando o filho de suas responsabilidades.
Samuel é tão bom vaqueiro quanto educado e sabido. É de fazer inveja ao diploma. Se de um lado traz a coragem indispensável às lidas do campo – mais ainda quando envolve gado- do outro oferta aguçado bom humor. Não falta, nem mesmo diante das comidas de rabo de sua mãe.
Vistoso, já há quem tenha se engraçado por ele. Em meio ao burburinho digo: “cheirar um cangote não adoece ninguém”. Ele sorri, em sutil concordância.
Entre prosas, sermões e goles de café, Samuel se permite fotografar. Uma pausa nas broncas, mas dura pouco.
Na peleja entre o vaqueiro e a onça sou aquele que aprende. Como velho amigo, entendo Alciene. Nada mais pedagógico que as marcas trazidas por ela na face. Sua lida é farta. Certamente almeja para o filho mais que as estradas áridas de agosto.
Samuel, quando monta a burra, quase todo dia, faz a escolha mais importante da sua vida. A aparência com o pai, seu Pedro, vai além da fronte. É sina e eu desconheço palavra mais forte e mais bonita. Se na escola vai aprender os tais pronomes, raiz quadrada e o verbo “to be”, reconhece na lida o dialeto do campo, os cacoetes dos bichos, a poesia dos caboclos.
Por mais corajoso que seja, Samuel sabe que abaixo do alpendre que nos protege do sol, quem canta de galo, ou melhor, de onça, é sua mãe.