O recém-nascido Jesus em uma manjedoura. Esta cena clássica ganhou pitadas de romantismo, virou quadro e decoração fundamental na época em que deixamos de lado o ódio destilado nos outros dias do ano. A gente acha lindo Jesus ali. Até parece que foi fruto de uma gravidez planejada (O anjo da anunciação não deixou o manual “Como criar o filho de Deus”) ou o lugar teria sido previamente reservado por Deus em virtude do apelo popular que a cena geraria no futuro.
Não há nada de romântico na realidade que recebe o Cristo nascido. Tomando como base a Bíblia Sagrada, entendo que o criador veio viver na pele os ares de uma sociedade desigual, mui distante de suas intenções no Gênesis. A decadência social do tempo de Cristo, bem como a nossa, resultaria de um mundo apartado da justiça divina. Nossa realidade pós-moderna e seus sistemas trazem muito do contexto opressor que o “Verbo”, como oprimido, veio sentir, não deixando de ser Deus, mas se fazendo humano.
Nascer em uma manjedoura foi uma condição imposta, uma saída pós tantas “portas na cara”. O dono do universo veio ser imigrante, não teve lugar vip em um dos planetas criados, que do ponto de vista das descobertas científicas beira a insignificância.
Ao longo de sua vida Cristo se colocou como salvação, filho de Deus, mas o que mais me encanta é o Jesus de Nazaré, humano, cidadão da Terra, inconformado com as injustiças de seu tempo. Enquanto Deus, usou seus poderes para dirimir desigualdades e aproximar pessoas daquilo que lhes era negado: o pão, água, mobilidade, felicidade de uma festa de casamento, liberdade e representatividade.
O Cristo, que ao chegar sentiria na pele as agruras de um mundo dividido entre ricos (poucos) e pobres (muitos), morreria anos depois fruto de um sistema que não tolera divergências e tão pouco aceitaria um rei não nascido nobre.
Natal é sobre se colocar na pele do outro, foi o que Cristo veio fazer. Quem é o outro nos dias de hoje, nesse Brasil de 2020? Todo aquele que perece ante um sistema que perpetua desigualdades: os índios ameaçados, ilutados, indignados. Somam-se a estes as famílias dos vitimados pela Covid-19, ante a dor do luto e o julgo de um desgoverno, que sob o comando do presidente Jair Messias Bolsonaro caminhou, a passos largos, para todas as trevas possíveis. A morte encontrou em Bolsonaro um hospedeiro reconhecido pelo seu desdém à ciência, a doença e agora à vacina. Bate no peito para dizer que não irá tomá-la, na exigência cotidiana de ter que provar sua masculinidade. Cabe lembrar dos estudantes pobres que sofreram com as baixas na educação. Meninas e meninos da periferia, jovens do campo que não tiveram aulas online. A estes a Covid-19 não apenas mata, mas dificulta ainda mais o acesso deles à emancipação social.
Já que a data existe, ainda que historicamente seja questionada, oxalá que o Natal nos conduza ao outro e não apenas no dia 25. Que seguindo o exemplo de Cristo, deixemos de ser juízes e passemos a ser irmãos, pois habitamos a mesma nave mãe. Que respeitemos, admiremos e não apenas toleremos a luta do outro (Professores, mulheres do campo, da floresta e das águas, os sem-terra, juventude campesina, cientistas, ativistas, para citar algumas).
Que muitos sejam os abraços e que a luz do Natal continue quando esse dia acabar, é o que importa.