OPINIÃO
É quase impossível não ter medo de ser mulher. Sentir medo antes de sair de casa e até mesmo dentro dela, é praticamente inevitável, pois ser mulher é programar e reprogramar cada passo que daremos e ainda não sabermos ao certo o que nos espera ao cruzarmos as esquinas da vida. É correr riscos. Não importa o contexto, a hora ou lugar. É ainda pior quando vivemos no país que ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Não estamos seguras.
Costumo dizer a seguinte frase: “se eu parar pra pensar eu piro”, mas quando uma mulher é morta brutalmente por um homem, outras mulheres sentem a dor dessa violência e tentam se colocar no lugar da vítima de todas as formas possíveis. A gente se imagina na mesma situação, idealiza formas de escapar, de se defender, de sobreviver. “E se…”, questionamos. E se Julieta Hernández, mulher, imigrante, nômade e palhaça, não fosse a única hóspede naquela pousada, localizada em Presidente Figueiredo, no interior de Manaus? E se ela não tivesse ido para lá? E se ela tivesse escapado? E se…
É o nosso direito de ir e vir sendo tirado da forma mais brutal e sangrenta que alguém possa imaginar.
Julieta era imigrante e vivia no Brasil desde 2015. Aos 38 anos de idade percorria o interior dos estados brasileiros sempre acompanhada de sua bicicleta e de seus apetrechos – figurinos, instrumentos e ferramentas de viagem, com um objetivo: chagar em Puerto Ordaz, na Venezuela, aonde sua mãe reside. Através do seu perfil do Instagram (@utopiamaceradaenchocolate), ela compartilhava sua trajetória de viagens pelo Brasil. No ano passado, desbravou cidades do Maranhão, como Caxias, aonde fez uma apresentação para crianças de uma ONG chamada CEFOL. Palhaça Jujuba, era como se apresentava. Sempre sorridente, com um olhar detalhista, capturava por meio da fotografia, poesia, dos lugares em que passava.
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Em um vídeo do Palhaços Sem Fronteiras, ela diz que seu trabalho a permitia oferecer uma outra visão sobre seu país natal, desconstruindo preconceitos para minimizar a discriminação contra seus compatriotas. “Ser mulher, palhaça e migrante venezuelana são duas coisas que estão entrelaçadas […]. Ser mulher, palhaça e migrante é uma grande responsa, porque a gente querendo ou não, vira referência, referência de mulher que viaja só, referência de mulher que escolheu uma profissão que geralmente de homem”, disse.
No início de dezembro, Julieta chegou a Manaus, seus passos eram compartilhados em seu Instagram. Entre os dias 22 e 23, disse em um grupo de WhatsApp que estava em Presidente Figueiredo, interior do Estado, no entanto, amigos e familiares não receberam mais notícias suas, o que obviamente preocupou a todos. Após acionarem autoridades, a terrível notícia: “Artísta circense venezuelana foi assassinada no Amazônas”, noticiou o veículo de comunicação, Mídia Ninja.
A Polícia Civil do Amazonas confirmou que o corpo da artista foi encontrado por volta das 18h da última sexta-feira (5), enterrado em uma área de mata em Presidente Figueiredo, localizada a 117 km de Manaus. Em uma atualização posterior, a Polícia Civil do Amazonas informou que Julieta foi vítima de estupro e teve seu corpo incendiado antes de ser morta. O casal que admitiu a autoria desse crime brutal foi preso.
Mas, porque o feminicídio ainda nos surpreende? Uma pergunta retórica e desesperada sobre algo que é tão recorrente. Se entre janeiro e junho de 2023, o Brasil registrou 722 feminicídios, 2,6% a mais do que o primeiro semestre de 2022, como aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Não importa se estamos em casa, como aconteceu com Cleci Calvi Cardoso, 46 anos e suas três filhas, Miliane, 19 anos, Manuela, 13 anos e Melissa Cardoso de 10 anos, que foram mortas brutalmente, em 24 de novembro do ano passado, por Gilberto Rodrigues dos Anjos. Três das vítimas foram abusadas sexualmente por Gilberto, segundo o delegado do caso, Bruno França.
Não importa se estamos caminhando na rua como aconteceu com Amélia Vitória de Jesus, de 14 anos, que saiu de casa para pegar sua irmã na escola, em Aparecida de Goiânia, e foi morta e abusada sexualmente por Jonildo da Silva Magalhães, de 38 anos. Exames de DNA e imagens de câmeras de segurança ligaram ele ao crime. “Foi [encontrado] esperma [dele] na região íntima da vítima”, disse o superintendente de Polícia Técnico-Científica, Ricardo Matos. Janildo já respondia na Justiça por um crime de estupro praticado em Rio Verde, em 2017, segundo a polícia.
E principalmente, não importa se estamos na estrada, viajando sozinhas, como aconteceu com Julieta. Segundo dados de 2019 do ranking Women Danger Index, o Brasil é o segundo lugar do mundo mais perigoso para mulheres viajarem sozinhas, perdendo apenas para a África do Sul. O levantamento considera e compara estatísticas de feminicídio, assédio, segurança e serviços.
Julieta deixa um memorial dos lugares e pessoas que conheceu durante sua trajetória itinerante. Graças aos inúmeros registros em seu Instagram, sua arte continua alcançando outras pessoas. Embora seja difícil imaginar que, alguém que capturava o melhor do mundo, com sua habilidade de fazer sorrisos e levar alegria aos lugares mais vulneráveis Brasil a dentro, tenha morrido da forma mais brutal que se possa pensar. É difícil pensar…