CRÔNICA
Certo tempo vi-me a partir dos olhos curiosos e contemplativos de uma criança. De todas as maravilhas existentes no seu incrível e fantástico mundo, seu maior encanto ainda era aquele manequim da lojinha do centro da cidade. Parecia extraordinário como aquele ser mudava como um camaleão para adaptar-se às mais diversas ocasiões sociais e manifestações culturais da região. Sentia vontade de ser como ele, poder viver a adaptar-se a todas as ocasiões da vida, ser o que quisesse.
De certo, aquilo lembrava-a do seu país das maravilhas onde as regras e complexidades da sua sina profana eram impenetráveis e apreendidas tal como servo ultrajante à realeza de copas. Mudava tantas vezes quanto podia e retornava à sua essência, livre, autêntica, casta, em paz. Afigurava puro êxtase, as muitas vidas possíveis para aquele manequim, só não compreendia como algo tão extraordinário aos seus olhos não aparentava ser o mesmo para ele. Sempre estático, nunca satisfeito ou feliz ou amado ou realizado ou, nunca. Na verdade, não demandava grande esforço para perceber que tratava-se de um ser vazio. A ausência de traços que contassem sobre todas as vidas que teve, indicava que tudo que tinha, de fato, era o fardo da infelicidade de um vão oco.
O tempo passou com a velocidade de uma ave de rapina em busca da sua presa, a criança, agora tão madura quanto a primavera de setembro, que carrega a doçura e a felicidade da temporada das mangas, mas que também lida com a sina da enorme mangabeira em permanecer firme e imponente mesmo em meio a tantos ataques para roubar-lhe seus frutos.
Hoje, sente na pele e compreende o vazio daquele manequim da lojinha do centro da cidade. Descobriu que assim como aquele estático e não tão incrível ser ou nada muito extraordinário, havia tornado-se, também, refém da sua sina de camaleão. Tantas vezes fora obrigada a mudar sua aparência, sua essência e além de tudo, o fardo excruciante de não poder retornar a ela da mesma forma como acontecia no seu país das maravilhas. Assumir vidas que não a sua, planos que não os seus, ver-se por muitos, rotulada, modificada, estratificada, ultrajada.
A feição estática e a ausência de traços que demonstrasse a realização de seu sonho era perceptível e, agora, podia afirmar que tornara-se como aquele manequim que um dia admirou com grande devoção.
Nem mesmo o clima primaveril das margaridas era capaz de restaurar aquele brilho reluzente da criança que vive a chorar e penar as mágoas que dilaceram sua essência e a mata aos poucos, gota por gota, traço por traço, a esvazia e a torna estática. Até quando as palavras não reconstruírem mais meu ser, ainda hei de resistir, sou arte atemporal. Com afeto, para meu grande herói, o manequim da lojinha do centro da cidade, o qual nunca soube quem era, pois nunca o pôde ser.
Por Adriane Costa