OPINIÃO
Existem músicas que a gente carrega para vida toda. Ouvindo com maior ou menor frequência. Canções são como lugares que a gente cotidianamente visita. Senta, escuta e escuta de novo. Minha vida é repleta delas e creio, leitor (a), não ser unanimidade. Você me entende.
Gosto de imaginar a vida – essa, real, nua e crua – como uma série de TV. Momentos felizes, dramáticos, tensos e intensos, com direito à trilha sonora. Um pacote que hoje em dia se chama playlist. Que música você visita quando chora, quando ama, quando sorri, quando geme de prazer? Que músicas você carrega?
Há uma que trago de longas datas. Isso quando era a fim de uma garota que estudava na mesma sala, nos tempos da oitava série, no emblemático Olindina. Naquela época todas as formas de comunicação derivadas do celular eram futurista demais. Já gostava de escrever e os bilhetinhos eram a minha espetacular forma de flertar. Foi nesse tempo que um vizinho me emprestou um CD e dentre as muitas faixas contidas nele constava “A Cruz e a espada”, conduzida por Paulo Ricardo e o sagrado Renato Russo. Trata-se de uma versão acústica, simplesmente arrebatadora.
Violão, violino, vozes em evolução gradativa e uma letra de desafiadora digestão. Que combinação excitante lambuzada de poesia. Veja só!
“E agora é tarde, acordo tarde
Do meu lado, alguém que eu nem conhecia
Outra criança adulterada
Pelos anos que a pintura escondia
Agora eu vejo, aquele beijo”
A escuto matutando sobre histórias possíveis a partir de informações trazidas por letra, ao passo que de certo modo a conecto às minhas. Quantos beijos foram finais? Quantos beijos foram começos? O que mudou entre o primeiro e o último?
Se entendo música como um lugar, é natural que seja um “espaço” capaz de mudar, propor novas percepções. Tudo no seu tempo. Nas últimas semanas tenho escutado “A Cruz e a espada” como nunca antes, degustando-a sem pressa, percebendo elementos em sua melodia que ainda, depois de tanto tempo, não havia notado. Eu simplesmente adoro essa possibilidade. É como conviver com alguém por décadas e depois disso descobrir um detalhe ‘novo’.
“E agora eu vejo, aquele beijo
Era mesmo o fim”
Quero destacar a sonoridade do “fim” na voz de Renato, em especial. A fonética é a matéria-prima da música e me assombra como Renato usa este recurso de forma a trazer um outro sentimento diante do fim que pronuncia. Não me parece um fim decadente. Em “A Cruz e espada” o fim é ascendente, um fim capaz de se reerguer. O fim diferente de fim, com amanhã. Um desfecho, ao que se anuncia, repleto de força. Um fim sem arrependimento, necessário, mas não esquizofrênico.
O engraçado é que toda vez em que a escuto, fico atento. “Será se Renato vai mudar o tom, o nível? ”, indago. Claro que não vai – vou jogar essa loucura no combo da liberdade poética. O fato é que aquele detalhe musical, que nos fisga, pode estar em algo evidente, perceptível de primeira, ou em uma esquina mais intocada, notado após inúmeras visitas.