Acordo e logo ligo o computador. Em raros dias, entre a cama e a tecnologia vou observar o mundo da linda vista de minha varanda. Dela posso ver a torre do Santuário de São Benedito, entre o verde que resiste ‘nas Pedreiras’. Em dias normais, antes de ver o céu lá fora, conectado, vejo o mudo pelas janelas das redes sociais, em especial dos portais de notícias locais e globais. Não busco esperança, apenas saber o quanto o mundo piorou depois que desliguei meu smarthphone.
Cresci ouvindo falar do fim do mundo. Quando criança, católico praticante, já ouvia sobre essa história. Tempos depois, convertido ao adventismo do sétimo dia, a narrativa sobre o apocalipse se intensificou. O assunto sempre me chamou muito a atenção e tudo o que o versa aguça minha curiosidade.
Não existe uma só versão do fim do mundo. Ciência e religião, com os abismos entre si, convergem para uma verdade: o fim do mundo já começou. Os religiosos contam com um ponto a mais, a existência de Deus, que deverá livrar os obedientes, leva-los para o céu com o agradável aroma dos desobedientes a queimar. É o que dizem.
O fim do mundo já começou e é a conta gostas. Pensando bem sobre o jornalismo no meio disso tudo: nós relatamos o fim do mundo. Todo dia escrevemos um trecho dessa sanha. Confesso não ser fácil descrever a deterioração do próprio mundo, em uma escala global, local, mas fatidicamente conectada.
Na infância, me intrigava a ideia de um cometa chocando-se com Terra. Até hoje é assim. Mas agora, jornalista, penso que cansamos de esperar o cometa, Deus, ou seja lá o que for. Decretamos, de domingo a domingo, nosso próprio juízo final. Nesse cenário não existem santos e profanos. Na versão apocalíptica sob regência do capitalismo, existe uma minoria rica, farta e alegre, e uma massa substancial de pobres, desamparados e desesperados. É sobre a divisão de classes que o fim do mundo se assenta.
Nenhum sinal é mais latente do que a destruição da Terra, nossa casa comum. É a regência predatória do capitalismo que faz sucumbir, com eminente possibilidade de não-retorno, a maior floresta do mundo. Há pelo menos 15 dias, sob o sonho do ouro, garimpeiros invadiram o Rio Madeira, Amazonas, onde a exploração do minério é ilegal. Chocam-me as imagens de centenas de dragas e balsas preparadas para destruição. Segundos áudios que vieram a público, estão dispostos a desafiar lei.
Não há como falar de fim do mundo e ignorar o fato de que é Jair Bolsonaro que preside este país. Ele é o pai de um governo que desfez teias de proteção fundamentais no combate aos crimes ambientais. Sucateou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBMA) e se empenhou pelo fim do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). É a favor do garimpo com sua exploração mineral no sagrado território das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. São estes que tem o território ameaçados, constantemente, diante da grilagem de terras. Gente esquecida pelo estado, ameaçada de morte. O fim conhecemos.
A destruição ambiental, é bom que se diga, não é um projeto de hoje, nem de ontem, vem de longas datas, achando guarida nos governos de direita e esquerda. É bom lembrar que uma das faces mais visíveis do ruralismo, a atual senadora Kátia Abreu, foi ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento durante parte do governo da petista Dilma Rousseff. Foi no governo do petista Luís Inácio Lula da Silva, em 2010, que a Usina de Belo começou a ser parida, impactando violentamente territórios, como mostra a reportagem ‘O rastro de destruição de Belo Monte”, produzida pelo site Amazônia Real. A mega obra, com valor estimado em R$ 40 bilhões, provocou distorções na natureza, nas sociedades abrangidas por seus impactos e agora sabe-se que gera menos energia do que o prometido. O desenvolvimentos para as populações que estavam no território nunca chegou, mas o fim do mundo sim.
No Maranhão, sob o governo ‘comunista’ de Flávio Dino, o fim do mundo tem pressa e começa no campo. O devorador agronegócio avança sob o ícone sagrado da soja. No estado há uma escalada de violência dia após dia intensificada, testificam dados do Relatório ‘Conflitos no Campos Brasil 2020’, da Comissão Pastoral da Terra. Os órgãos ambientais estaduais são acusados de servirem aos interesses daqueles que violam os territórios e seus povos. O fim do mundo começou. A morte da quebradeira Maria Correia e seu filho Júnior Correia, em Penalva, é um retrato nítido deste fim de mundo patrocinado pelo estado.
Ledo engano é pensar que é um fenômeno distante. O capitalismo é um deus onipresente. No campo, na cidade, águas e florestas. Para cada um desses contextos um fim do mundo, ou versões simultâneas que desaguam na morte. Em Pedreiras, o mais recente sinal febril do nosso apocalipse veio em forma de som, o estampido dos disparos efetuados à luz do dia em um dos espaços mais movimentados da cidade, o Mercado Central. Fala-se que um dos assaltantes era de menor. Na semana passada, o corpo de um homem, que segundo a polícia integrava uma facção e efetuou disparos contra agentes da Polícia Civil, ‘desfilou’ pelo centro comercial da cidade, ao ser levado por agentes da lei.
O fim do mundo é uma realidade nossa, escancarada na violência latente, onde pobres são linha de frente, atingidos por balas, fome e desesperança. Os que falam pelas forças de segurança preferem os dados. Nas redes sociais os espetáculos de horrores, assistidos quase que simultaneamente, desmentem os que apregoam tranquilidade.
A política, que em seu sentido primeiro é entendida como instrumento de libertação, se faz inverso. Um rei na mão dos dominadores dos homens. Meio pelo qual disparidades sociais se perpetuam nas costas dos explorados, para benesse de uma meia dúzia. Coronéis, hipócritas, caloteiros, torturadores, exploradores, homicidas e manipuladores, cuja santidade dura menos que uma missa. São estes que clamam por Deus, na recusa de enxerga-lo nas vítimas da pobreza que alimentam. A sede, fome e nudez tem raiz na omissão desta gente a serviço de suas ambições.
O lucro está na raiz deste fim do mundo produção humana. É o capitalismo que rege garimpeiros, fazendeiros e os que falam pelo estado: no legislativo, executivo e judiciário. Estes gozam do paraíso, as custas da paupérrima vida de milhões de pessoas no mundo.
Aqueles que, via capitalismo, projetam este fim de mundo, esperam neste sistema encontrar uma solução. Suas fortunas, por hora, lhes ofertam certa segurança, abrigo diante das mudanças climáticas e convulsões sociais. Olham para Marte com válvula de escape. A salvação, como tudo sob o capitalismo, será comprada. As bases já estão erguidas, mas nem todo mundo vai ao espaço.
Todos os dias, de domingo a domingo, acordo para escrever sobre esse mundo em decomposição e me pergunto quem sou neste fim do mundo narrado em terceira pessoa? De uma coisa sei: não pode haver um mundo justo, de esperança e solidariedade sob regência do capitalismo. Nunca vivi sob o prisma do socialismo estatal, mas pelo que leio, distorcido também provoca dores e mortes. Na contramão dos que olham para Marte, penso que precisamos revisitar o nosso começo. Há saber em nossas origens. Olhar para o ponto de ruptura que nos levou a esse estado de coisas. As comunidades tradicionais, com suas práticas e partilhas, entendo, são os educadores dessa pedagogia do recomeço.