“Não vejo um pedaço de carne há muito tempo. Levamos para casa e fazemos para os meninos comerem. Sou muito grata por ter isso aqui”, disse Denise da Silva ao jornal Extra. Uma mulher de 51 anos que é parte de um Brasil enfileirado, na esperança de achar, no lixo, pelancas e ossos, na cidade tido como ‘maravilhosa”.
Os registros de Domingos Peixoto se espalharam rapidamente, provocando choque numa parcela social que não se conforma com um país tão deformado. A fome, minimizada em tempos recentes, voltou a assombrar cerca de 19,1 milhões (9% da população) de brasileiros, segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O aumento no preço dos alimentos joga gasolina numa crise que acha guarida na instabilidade política.
Para assombro do bom senso e do que pode haver de mais básico no campo da racionalidade, uma parcela deste Brasil, que mora ao lado, farta do que comer e escassa de ocupação, se escandaliza ao saber que o filho do Superman é bi. Logo quem, o herdeiro do ‘homem de aço’: que personifica tudo aquilo que o mundo heteronormativo aprecia.
No país do negacionismo, ratificar o óbvio é urgente: Krypton não existe, Super Homem não existe e muito menos seu filho. Contudo, precisamos ter cuidado em apenas fixar nossa argumentação no fato de que a peça que levou os “santos do pau oco” ao infarto, é uma ficção. O personagem não existe, mas no mundo real beijos entre dois homens são reais e transas entre mulheres também. Sobre a prática sexual do outro: só o respeito cabe.
No meio disso tudo, a claque conservadora [expressivamente evangélica e católica] achou um novo símbolo, já que os de outrora perecem ao sabor do tempo. O jogador Maurício Sousa, em suas redes sociais, teceu críticas à ideia da bissexualidade do personagem da HQ, com manifestações validando sua posição e contrárias. Foi demito na quarta-feira (27) do Fiat/Minas Tênis Clube, mas viu o número de seguidores no Instagram disparar, chegando a 2,5milhões. Já há quem peça que se candidate ao Senado. Segundo Maurício foi tudo opinião.
Esse Brasil que paga de santo adora evocar a palavra valor. É o mesmo Brasil, que até aqui, endossa desigualdades históricas, inclusive, sob amparo das leis, para extermínio de valores que não são os deles. O que pregam não se restringe a seus templos e púlpitos. São os mesmos que adentram comunidades indígenas dizendo o que devem vestir, em que língua rezar e que deus chamar. Adentram terreiros, destroem espaços dedicados à prática religiosa com raízes na África. São aqueles que dizem que uma mulher não tem o direito de decidir se aborta ou não, mas defendem o projeto de morte arquitetado por Jair Bolsonaro e aqueles que lhe fazem sombras. São esses moralistas da vida alheia que defendem o uso de arma contra sem terras.
É importante frisar que no campo das igrejas evangélicas existem movimentos que atuam na superação das desigualdades e no amparo aos mais pobres. Na Igreja Católica Apostólica Romana esse movimento é mais antigo, mas de igual modo atacado. Fundamentam sua pregação no gesto. Falam sobre Deus pela quentinha, a roupa, o agasalho e na visibilização deste Brasil miserável.
Há explicitamente um conflito: de um lado aqueles que querem um Brasil homogêneo, que fala em “línguas estranhas”, mas que não aceita o Tupi. Um Brasil que chama a divindade de Jeová, mas associa Exu ao demônio da narrativa bíblica. Deus só serve se for na perspectiva deles, família só se for a deles, valores só se forem os deles. Há um outro Brasil mais caridoso e maior que tudo isso, que atua no combate às opressões, sejam elas de gênero, econômicas e políticas. Um Brasil com profundidade, com ações comunitárias sem holofotes, mas com impactos sociais relevantes. Um Brasil com uma visão mais plena do corpo e da humanidade, que não a resume em órgãos genitais.
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