“A gente acordava, entregava o presente para ele no café da manhã (sem escovar os dentes), o abraçava e dizia: “te amo e quero sempre estar com o senhor!”. Naquele abraço quente. Depois tomávamos café e saíamos, mas não pra almoçar ou fazer coisas muito formais. Era algo do tipo: “vamos tomar um banho no rio?”. Neste último ano fomos para o Vale da Serra, rumo ao bairro do Diogo. Estava me ensinando a andar de moto. Fomos para lá, andamos de moto, brincamos muito no balanço – temos fotos. Meu pai gosta muito de fotografar, então nesse dia ele tirou foto da gente em cada canto. Não era aquela coisa de dar o presente, do valor monetário, mas sim o valor de estar com ele, de conversar, banhar no rio. Então é essa a lembrança que eu sempre vou ter do Dia dos Pais”.
Aos 21 anos, Ana Ceci Melo de Sá Barrêto, encara o primeiro Dia dos Pais sem a presença física do seu, o poeta Samuel Barrêto. Depois daquela segunda, 13 de julho de 2020, por volta das 21h15, nada será como antes para todos aqueles que se acham ligados a Samuel e sua obra. Em sua residência, Ana Ceci descreve uma figura popularmente conhecida por suas rimas e lutas. Apresenta ao “O Pedreirense” uma outra perspectiva, só compreendida por ela e seus irmãos. Se João Barrêto (avô), deixou a icônica “Pálida Lembrança”, seu pai deixou memórias repletas de cores que não cabem em um só livro.
O Pedreirense: Samuel Barrêto foi tantos, mas como o define enquanto pai?
Ana Ceci: Amor, principalmente amor. Acalento no momento difícil e um exemplo. Certo dia eu perdi meu “Vade Mecum” no Carvalho (um supermercado perto da minha faculdade) e fiquei muito desesperada. Não sabia o que fazer. Falei com ele e com minha mãe. Sabia que quando eu falasse com eles iria me acalmar. Ele é isso para mim como um pai: acalento e amor. O braço forte tenho ao meu lado. Mesmo partindo, sempre vou tê-lo. Não quero falar, “ele fazia”, “ele estava” e “ele gostava”. Quero dizer, “ele fez”, “ele gosta”, como se ele ainda estivesse aqui, porque eu sei que está. Então meu pai é isto. Samuel pai, além de poeta, escritor e professor, é amor, é estar perto, carinho, é isto!
OP: No cotidiano, como essa paternidade se manifestava?
AC: “Tu não almoçou ainda?”, “tá na hora de almoçar!”, “minha filha, não almoce tarde, eu já tive gastrite eu sei como é isso”. “E aí, como é que tá a faculdade, são quantos períodos? Já finalizou quantas disciplinas?”. “Ana Ceci, já está tarde, 10h da noite não é hora”. Era isso. Além de abraçar e beijar. Ele sempre reclamava dizendo que quando a gente era criança ficava mais próximo do pai. Ele dizia que quando a gente era pequeno pegava o shampoo e lavava o cabelo dele no meio da casa, molhava tudo e dizia: “deixa eu arrancar tua cara?” (que era puxar a sobrancelha). Aí ele falava: “vocês cresceram e não ficam fazendo mais isso comigo, não ficam me agarrando”. A última lembrança que eu tenho, antes dele ir viajar, ele estava deitado no quarto com minha mãe, já 11h da noite e eu estava na cozinha fazendo uma comida. Aí ele me chamou: “vem aqui, ver uma coisa!”. Era para deitar no meio da cama deles e ele me abraçar por trás. Era assim que ele demonstrava a paternidade. Sempre com muito carinho, até brigando era com muito carinho. Ele podia brigar, falar forte, mas depois ele pedia desculpas e explicava: “minha, é porque lhe amo e eu quero lhe proteger. Não quero que nada de ruim aconteça com você”.
OP: Uma das fortes lembranças dos últimos meses, principalmente em decorrência da pandemia, foi forma como seu pai se apropriou, legitimamente, das redes sociais, para levar poesia através das lives. Como você interpretou tudo isso?
AC: Quando iniciou a pandemia ele ficou muito agoniado, muito medroso, ele tinha muito medo. Ele sempre foi uma pessoa de estar andando de moto na rua, lendo poesia, conversando no Bar do Índio. Então fazer as lives foi uma forma que ele encontrou de fugir da pandemia e continuar vivendo tudo isso. Tudo começou em um domingo, enquanto ele assistia a uma live (esqueci o nome do rapaz que fez a live). Quando terminou apareceu na tela, “inicie uma transmissão também”, ele clicou e iniciou. Deitado no quarto, leu poesia e disse que gostou. Então sugeri que fizesse no escritório dele, com seus livros. Começou a fazer mais arrumadinho. Fazia lives pra ler poesia e dar oportunidade para outras pessoas cantarem. Interpreto isso como: o levar a arte que ele sempre fez. Mesmo na dificuldade e em todos os tempos, foi assim que ele buscou continuar levando cultura para todas as pessoas.
OP: Em que momento você percebeu que o estado de saúde dele era grave e que você estava o perdendo?
AC: Pode parecer besteira, mas não perdi a esperança até no momento que me falaram que meu pai tinha falecido. Dizia: “meu Deus, se o Senhor conseguiu ressuscitar Lázaro (personagem bíblico), por que meu pai também não pode?”. Sentia que era uma mentira e que poderia acontecer e que poderia ficar bem, mas quando a gente recebeu a notícia de que era um câncer, em um domingo, fiquei muito nervosa. Chorei junto com minha irmã e tia Raira, mas sentia uma força que me dizia que a gente ia passar por cima disso tudo e que isso ia passar. Em nenhum momento imaginei que a gente o perderia, não tê-lo mais em matéria. Soube que o estado dele era sério e que a gente o perdeu quando o caixão dele chegou. Esse foi o único momento, quando eu o vi lá deitado e ele não pode me abraçar.
OP: Você se recorda do último contato físico que você teve com ele?
AC: Quando ele saiu pra viajar. Deu aula um pouco antes do momento saiu pra viajar. Ele não sabia mexer direito na plataforma, só gravava, depois eu baixava no YouTube e postava na plataforma. Cuidava disso pra ele. Fiquei todo o tempo na sala com ele, porque a gente ficava na casa da tia, minha madrinha, perto da casa da minha vó, pra ele viajar e tudo. Então foram esses os últimos momentos. Quando ele saiu pra viajar eu pedi a benção. O que mais me marcou foi quando ele estava saindo e se despediu da minha vó. Quando ele abriu o portão começou a chorar, não sei se ele estava sentindo que não ia voltar, que aquele era o último momento dele com a gente. O que me marca é ele entrando dentro do carro chorando e vendo minha vó, era um choro de dor.
OP: Em off você disse que teve um diálogo virtual…
AC: Tive. Antes dele saber do câncer. Ele foi internado, porque a suspeita era de uma infecção urinária. A gente tinha iniciado um curso de pedagogia, uma segunda graduação. Ele queria muito que iniciasse com ele. No sábado, pela manhã, mandei mensagem pra mãe perguntando como ele estava e ele me mandou um áudio dizendo: “minha filha, estou bem, essa foi uma das melhores noites que tive desde que cheguei”. Logo após pediu que eu olhasse se as aulas do curso de pedagogia tinham começado e caso tivessem atividades, que eu fizesse. Essa foi uma das últimas conversas que a gente teve. E a última foi quando a gente descobriu o câncer, no domingo que liguei e falei com ele. Nós dois chorando, eu dizia: “pai, você é forte, a gente vai passar por cima disso”. Ele só chorava.
OP: O que há do Samuel em você?
AC: Queria dizer, tudo, mas muita gente diz que quando a gente ri, é o mesmo sorriso, os olhos. Muita gente diz que eu sou ele, feminina (risos). Talvez ele tinha uma calma muito grande para resolver problemas e perdoar. Ele não se zangava por muito tempo. Ele tinha muito isso de não levar para o pessoal, perdoar e me vejo muito nele.
OP: Que parte da casa mais lembra o Samuel?
AC: Tudo. Mas pra você entrar e sentir ele, é aqui, no escritório dele. Tudo é ele aqui. Os livros estão do jeito que deixou. Os escritos, poemas que fazia no papelzinho aqui jogado, é ele.
OP: Como você descreve 2020?
AC: Muito difícil, porque a gente iniciou tudo bem: a faculdade, vida e planos. Meu pai tinha muitos planos e de uma hora pra outra a gente ter que se recolher em casa, ter medo de comprar um arroz ou um remédio. E muito difícil! Ter que passar álcool, colocar máscara, entrar em casa como se tivesse com a morte na gente. É muito difícil! Além de sentir a dor de perder alguém tão valioso que foi meu pai, continuar ainda com medo de sair na rua. É difícil! É o ano da morte, o ano da perda, o ano perdido.
OP: Que poesia, na sua opinião, melhor define seu pai? Tem uma preferida?
AC: Todas são, mas puxando o saco, as preferidas são as que ele fez pra mim (risos). Uma que define muito ele e que eu gosto muito é a “Bendito Olhos”. Meu pai me lembra muito a questão social. De lutar por quem não tem, garantir os direitos de quem não tem, e a “Bendito Olhos” fala disso. O inicio diz assim: ‘Bendito os olhos de Zeus, que no Olimpo tem nome, orando pelos ateus nessas vielas da fome, nessas vielas da fome já ouço o nome de Deus…”.
Por Joaquim Cantanhêde e Mayrla Frazão