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terça-feira, janeiro 21, 2025

Enquanto o jaleco seca e a cidade dorme: relatos do filho de uma enfermeira

Na semana em que o Brasil chegou à 159.562 óbitos registrados e 5.519.528 diagnósticos de Covid-19, conforme dados das secretarias de saúde dos estados, e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS) foi posto à mesa, graças ao decreto presidencial 10.530, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e revogado por ele no mesmo dia, partilho um texto escrito quando surgiam os primeiros casos de Covid-19 na região do Médio Mearim, mais especificamente na cidade de Lima Campos, Maranhão. É um relato que trago de casa, a partir do envolvimento de minha mãe, enfermeira, com as lidas hospitalares num contexto pandêmico. Concluo dizendo: qualquer ideia que venture a privatização da saúde é distorção das realidades que sedimentam essa país.

Com vocês o relato do filho de uma enfermeira:

É quase noite quando minha mãe, Irismar Cantanhêde Frota (56 anos), chega em casa. Nada de abraços em seu unigênito, tão pouco beijos no marido. Entra no quarto, troca de roupa, mas continua enfermeira mesmo após colocar o jaleco branco na lavanderia. Não pode culpar a pandemia. Assim tem sido desde que aceitou coordenar a equipe de enfermagem do Hospital Geral de Lima Campos (MA). Obviamente os dias não são os mesmos diante da ameaça de uma tal Covid-19, agora mais próxima do que nunca. O celular toca incontáveis vezes. Um paciente deu entrada no hospital e na base do empirismo todos as suposições levam ao coronavírus, mas enfermagem é ciência. Há um rito a ser seguido: entre os sintomas e o resultado do exame existem protocolos, o teste, cinco ou mais horas de estrada em uma BR, precária em alguns pontos, com destino a São Luís e no mínimo sete dias de espera.

“O paciente dá entrada no hospital, passa pela recepção, preenche uma ficha e depois é encaminhado para a triagem. Em seguida o médico faz a avaliação dos sintomas. Se forem compatíveis com os da Covid-19 solicitará o teste e encaminhar o paciente para isolamento em leitos disponíveis, sendo acompanhando por uma equipe até a chegada dos exames”, explica Irismar Cantanhêde dois dias depois do início da escrita desse relato.

Ouvindo-a em diálogo com uma das técnicas de plantão é possível ter ideia do tamanho do desafio que as cidades pequenas já enfrentam em meio a uma realidade nova (o vírus) e problemas cotidianos.

O desconhecido impõe temor, até mesmo em Irismar, que desde os 13 anos de idade conhece com profundidade a rotina hospitalar. Ela, mulher negra, decidiu frequentar hospitais quando entrar na universidade era coisa de branco e o sonho de se formar era impossível para os membros da família Cantanhêde.

Recordo-me de uma das muitas conversas de calçada com vó Francisca das Chagas sobre minha mãe. “‘Menina, o que diabo é que tanto olha pra essas muié, que cai até dentro do esgoto?’Aí ela disse: ‘Oh Mãe! Mas acho tão bonito essas muié tudo de branco. Quando crescer venho trabalhar bem aqui, nesse hospital (antiga Casa de Saúde do Dr. Carlos Melo) e vou vestir uma bata (jaleco) dessas’. Eu pah (tabefe). ‘Bora! Deixa de tá conversando besteira bicha, tu tá é variando’. E ela: ‘a senhora vai ver!’”. O diploma veio em 2014, mas bem antes disso ousou vestir o jaleco e com ela o conhecimento prático.

“Vocês estão de máscara, colocaram o avental?”, indaga, via WhatsApp, a uma das técnicas que lidam diretamente com a situação.

Em dias tensos como esse, a casa, que costuma varrer todas as noites, fica em segundo plano. Nada de “Vivemos esperando dias melhores” para deixar a noite mais leve. É o silêncio que impera. Vai para lá e para cá com o celular na mão. Liga para Deus e o mundo. Nem sempre a internet ajuda e as falas cortadas aumentam a tensão. “Eita internet miserável!”. É áudio que não acaba mais. Daqui do meu canto, escrevo e reflito.  Por trás das vidas diariamente salvas há uma rede de agentes, profissionais de saúde empenhados para que isso aconteça. A Covid-19 é o elemento novo desafiando uma saúde pública cotidianamente deficitária e realidades locais historicamente estabelecidas.  

A essa altura do campeonato o número de casos e óbitos inflam no Maranhão. “Ultrapassamos a marca dos 1.000 casos confirmados de coronavírus. Agora são 1.040. Com 44 óbitos. Irei editar novas medidas. Mas elas só serão adequadamente cumpridas e produzirão efeitos se houver compreensão de todos. Conto com vocês.”, informa o governador do estado, Flávio Dino, via Twitter. Foi dele a decisão de deixar a cargo dos prefeitos a tomada de medidas, em especial aquelas que tratam sobre a flexibilização da atividade comercial não essencial. Enquanto os olhares apontam para região metropolitana de São Luís (capital, São José de Ribamar, Raposa e Paço do Lumiar), que concentra 90% dos casos no estado, o vírus avança no interior, jogando um balde de água fria nos negacionistas de WhatsApp. O vírus já perambula pela região do Médio Mearim: Bacabal e Trizidela do Vale entraram para as estatísticas.

São muitas as informações e o tempo urge por soluções. Na urgência sobra burocracia e tensão nas equipes de saúde que se acham na linha de frente, lidando diretamente com uma demanda que vem se ampliando.A preocupação não é van e vai além das equipes de saúdes dos municípios. É também percebida na fala dos agentes públicos. “Não tenho nada de teste rápido aqui. Fico triste em saber que passa de sete a dias para receber o (resultado) exame”, explanou Fred Maia, prefeito de Trizidela, em entrevista ao Bom Dia Mirante, da TV Mirante, afiliada Rede Globo no Maranhão.
Soma-se a isso a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), realidade ratificada pela a Secretária de Saúde de Lima Campos, Lidiane Curvina, que destaca: “O Governo Federal não tem sido suficiente. Nos repasses para o estado sim, mas enquanto ao município não. Os preços estão superfaturados e há escassez da matéria-prima. Mesmo com dinheiro não encontramos os EPI’s necessários. Estamos nessa corrida contra o tempo e dinheiro insuficiente até. Um respirador é muito caro, a mão-de-obra também. A gente tá mesmo pedindo a Deus que nos guarde”.

Irismar Cantanhêde Frota, enfermeira (Foto: Joaquim Cantanhêde)

“Ainda nesse telefone?”, indaga meu pai que vive o oposto, cansou-se da calmaria. Quer ganhar o mundo, colocar o pé na estrada atravessando o país rumo a Santa Catarina. Com o risco da pandemia no sul foi mandado para casa, até segunda ordem, pela empresa a qual presta serviço. Também passa boa parte do dia diante do celular, mas nada que o faça esquentar a cabeça.

No meio da apreensão minha mãe faz ecoar pela casa azulada um sinal de alívio, sorri em diálogo com o médico plantonista. Os sintomas do paciente em questão são incompatíveis com os da Covid-19, não havendo necessidade da solicitação de teste. Passará a noite no hospital e será liberado na manhã de seguinte.

Como profissional da saúde, Irismar sabe o valor da prevenção e toma nota dos caminhos apontados pela ciência, ainda mais em momentos críticos. Mais do que ninguém da família, entende a gravidade do momento. A pandemia fez cessar as visitas nas sextas-feiras à casa da vó Francisca. Numa das muitas ligações da noite é indaga por tia Dora sobre sua ausência, afinal, é sexta. Teve que reforçar as razões.

O Coronavírus é um marco amargo na história humana.  Assunto entre novos, velhos, incluindo a vizinha que vem comprar o didinho que minha mãe faz quando chega do trabalho. Minha velha (expressão de família) continua ali, abrindo a boca de sono, no mesmo lugar, desde às 18h. O Relógio marca 21h14.

Por sorte encontrará água na torneira para lavar o jaleco, já não tão branco após uma semana intensa, e o corpo fatigado pela soma dos dias. Nunca janta antes das 22h30. Na manhã seguinte me diz que a noite foi longa e que praticamente não dormiu.

Quantas enfermeiras, médicos e demais profissionais que fazem parte da engrenagem SUS não dormem bem já há alguns dias? Quantos não podem dar um abraço aquecido, receber um cheiro profundo ou um simples aperto de mão? As medidas sacrificam o contato e as máscaras nos negam o riso. Minha mãe representa tanta gente nesse momento. Mulheres e homens em risco, nos grandes centros de saúde e hospitais de baixa e média complexidade espalhados pelos rincões do Brasil. Vai parecer clichê, mas a máxima é coerente: por trás das vidas preservadas existem inúmeras noites perdidas.

Por Joaquim Cantnhêde

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Joaquim Cantanhêde
Joaquim Cantanhêdehttp://www.opedreirense.com.br
Jornalista formado pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
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