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domingo, dezembro 1, 2024

Dois anos sem Dona Dijé: memórias da “mãe palmeira”

Lá se vão dois anos sem a presença física de Maria de Jesus Ferreira Bringelo, Dona Dijé, que faleceu, aos 70 anos, no dia 14 de setembro de 2018. Contudo, seu protagonismo enquanto mulher, campesina, quilombola e quebradeira de coco babaçu, ecoa através das memórias de gente que com ela caminhou, nem sempre por estradas pacificas.

Dias antes de morrer, a líder quebradeira, chamada de “mãe palmeira”, andou por Brasília, foi tomar posse no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Um reconhecimento justo às lutas que desbravou em prol do território e de tudo o que nele brota, incluindo às comunidades tradicionais.

Foi a busca pelas memórias de Dona Dijé que nos levou à comunidade Monte Alegre, em São Luís Gonzaga, Maranhão, sua morada. Ali, na sala que por tantas vezes, Dona Dijé entrou e saiu, que sua filha, Cleidiane Ferreira Sousa (32 anos), e sua neta Yeda Letícia de Jesus Ferreira (16 anos), resgatam, por meio da oralidade, fragmentos de uma relação dual: por vezes física, pautada nas lutas sociais, nas dores reais de seu povo e também transcendente, pois se há luta por território livre, Dona Dijé vive.

O Pedreirense: Para vocês quem foi Maria de Jesus Ferreira Bringelo, Dona Dijé?

Filha: Uma mulher guerreira, trabalhadora, líder comunitária, uma boa mãe e vó. Ela liderava todo mundo. Uma pessoa que não desistia fácil dos seus sonhos. Militante daquelas que abraçava a causa. Aquilo em que acreditava não deixava morrer, lutava até o fim. Ela passava muita confiança pra gente. Nos colocou pra estudar, mas ensinou o outro lado. Levou a gente pra caçar e pescar. Ensinou tudo o que sabia, além de ler e escrever. Levou a gente para aprender o ofício que sabia: quebrar coco, fazer carvão. Tudo o que fazia no campo ensinou pra gente.

Neta:  Até hoje é uma guerreira, que me ensinou várias coisas, tudo o que precisava. Fez de tudo para me colocar na escola, me fez aprender a quebrar coco. Foi uma guerreira pra mim.

OP: De que forma sentem a presença dela aqui, na residência que construiu com seu suor e sua luta?

Filha: É difícil, pois a presença dela é constante. Da hora que a gente levanta até quando vou dormir, sinto a presença dela. Quando vou fazer alguma coisa, que quero desistir, lembro dela. Não posso desistir, pois onde ela estiver, estará vendo que estou desistindo do que ela acreditava. Tenho que estar aqui para dar continuidade, passar tudo que aprendi com ela para os meus filhos. Tenho dois filhos. A minha filha mais velha era 24h aqui com ela. Não dá pra gente esquecer. Tudo o que fazemos é aqui na casa da mãe. A gente sempre fala seu nome. Partiu, mas ela ainda está presente em nossos sonhos, nas nossas lembranças, porque ela deixou um legado. Nós, os filhos, vamos continuar esse legado. Nós é que temos que fazer valer a pena a história dela. Estamos engajados, desde meus irmãos mais velhos, sobrinhos, filhos. Ela teve cinco, dois homens e três mulheres, só que depois aparece o Macione, filho de um marido que ela teve, mas que o tratava como filho. Ele vinha pra cá e convivia com a gente.

OP: Em que Dona Dijé acreditava?

Filha: Ela acreditava muito nas comunidades, na força do homem do campo, acreditava muito nos candomblés, terecô, nos povos de terreiro, todo tipo de cultura ela abraçava. Não tinha distinção por fé ou religião. Ensinou a gente a dançar tambor de crioula, mas levou a gente também para a igreja, mostrando todos os lados da cultura que pôde mostrar para gente. Sempre dizia que a vida não pode ser só na igreja. Deus existe, a gente tem que acreditar, cultuar, mas existem os terreiros, tambores e temos que lutar por aquilo, porque nós somos isso. Se a gente negar nossa raça, cultura e história, quem vai fazer ela ser levada para frente? Então dona Dijé era isso, era muito de dança, a cultura estava na veia dela, não tinha como separar. Todas as festas e ritmos que puderem imaginar ela apresentou pra gente. Tinha a cultura dela, mas queria que a gente tivesse o nossa própria cultura.

OP: Qual o maior ensinamento que ela deixou?

Neta: Não desistir, em especial dos estudos.

OP: Como você lida com esse ensinamento?

Neta: Nos estudos e no legado que ela deixou para nós, estamos enfrentando, debaixo de chuva e sol.

Yeda Leticia de Jesus Ferreira, neta de Dona Dijé (Foto: Joaquim Cantanhêde)

OP: O que o território simboliza para as quebradeiras? Quais as atuais ameaças a esse território?

Filha: O território representa tudo, porque aqui é nosso lar. Aqui a gente constrói a nossa base, nossas raízes. Onde ficaram os nossos antepassados. O território, para nós, é um espaço de riqueza, de onde a gente tira da terra o nosso sustento e nossa casa. Certo que a maioria das casas já é de alvenaria, mas algumas ainda são de taipa e de palha. Tudo isso a gente tira desse solo, desse território, não há como a gente separar. O território para mim, hoje, é tudo, por isso a gente está nessa luta de buscar que a gente conquiste, de fato, na lei, que o território se torne um espaço reconhecido como quilombola, mas atualmente enfrentemos vários obstáculos por causa disso. As pessoas não aceitam, querem inventar uma outra história pra gente, que nós negros que temos raízes não aceitamos e vamos lutar até o fim.

OP: Que tipo de história as pessoas criam?

Filha: Eles dizem que aqui nunca foi território quilombola, território de negro, que a gente vai buscar essas histórias em outros lugares. Que aqui sempre foi território do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ficam tentado implantar essas ideias nas cabeças das pessoas. A gente sabe que antes de existir esses órgãos, já haviam pessoas aqui, vindas da África e não por vontade própria. Então se elas vieram para cá, depois de muito tempo de trabalho, suor e escravidão aqui, eles ocuparam essas terras, doadas a eles quando a escravidão encerrou-se. Depois do INCRA eles começam a inventar que não querem terra coletiva, querem viver no lote. A questão do loteamento interfere na vida de várias pessoas. Minha mãe sempre lutou pelo não loteamento por conta disso, se tem um território coletivo para que dividir? Depois que acabou a escravidão se tornou um território coletivo. A comunidade está dividida bem no meio: de um lado os quilombolas e do outro lado os assentados que querem fazer um loteamento para que cada família tenha um pedaço de terra. O território é grande, mas quando se divide se torna espaço pequeno. Por isso a gente luta contra o loteamento. Enquanto uns tem um pedaço de terra cercado os outros irão viver de quê? Quando a gente cerca a gente privatiza o babaçu, a terra, não teremos onde pescar e plantar. E aí, a gente vai viver de quê? Ela sempre lutava muito pela questão da juventude, porque a gente era criança, foi crescendo, vivendo nesse coletivo, aí vem essa questão de loteamento. E quem casou, os jovens, vão pra onde? Vamos trabalhar aonde?  Eles dizem que só tem direito ao loteamento as pessoas que já moravam aqui. Os filhos vão ter que trabalhar no direito dos pais, mas eles não entendem que nossos filhos vão construir suas próprias famílias e essa questão vai se perpetuar. Os que ficarem aqui vão pra onde? Vão viver do quê? O trabalho aqui é a roça, a coleta de coco e a pesca, mas se fizerem essa questão do loteamento, vai privatizar e poucos vão ter acesso.

 OP: O que é a lei do Babaçu Livre?

Filha: Aqui no meu município, São Luiz Gonzaga, Maranhão, existe. Ela dá direito às quebradeiras coletar o babaçu em todos os espaços do nosso território, mas aqui existem espaços, hoje, onde a mulher já é proibida de coletar. Essa lei não é respeitada.  Quando a gente vai lá, faz a denúncia, vai no Ministério Público, delegacia, que faz a queixa, vem uma documentação. A pessoa respeita ali por uns dias. Por que a justiça não faz com que ela seja cumprida?  Antigamente era.  Se denunciava via Sindicato dos Trabalhadores, polícia e outros órgãos, que faziam com que essa lei fosse de fato cumprida, mas hoje não, a gente já fez tanta denúncia de derrubada de palmeira, de mulheres que são impedidas de entrar para quebrar coco e a justiça não faz nada, fica só arquivando.

OP: Para as quebradeiras é fundamental esse acesso às pindobas as Palmeiras.

Filha: A gente aproveita tudo da palmeira, nada se perde. A gente quebra o coco, tira o azeite da amêndoa, faz carvão e tira mesocarpo. Usa palha para fazer o teto da casa, cerca, banheiro. A palmeira quando cai vira estrume para o plantio hortaliças. Não se estraga nada.

OP: Como é que você vê a articulação da juventude na comunidade?

Neta: A juventude nem sempre tem essa mentalidade que nós da família temos.  Uns pensaram (passaram?) a pensar diferente quando houve essa divisão do território. Uma parte da juventude deixou de acreditar e assim fica difícil. Jovens, crianças, adultos e idosos que se envolveram nessa luta, hoje vivem no mesmo espaço, mas não conseguem se entender. Sendo que há 20 anos todo mundo convivia. Estamos no mesmo território, mas há essa ruptura bem no meio.  As crianças convivem com adultos que colocam essa ideia de ter um pedaço de terra do loteamento. Às vezes a Estela chega em casa e diz: “A menina disse que o pai dela já tem um pedaço de terra”.  Eu pergunto pra ela: “O que é um pedaço de terra?”. A criança acaba escolhendo um lado. O pai vai para um e a família tem que ir.  A divisão veio e deixou todo mundo sendo inimigo. Não era necessário haver essa briga e violência, mas eles não entendem e acham que tem que se afastar, ficar distante.

OP:  Qual o ponto central dessa divisão?

Filha: Essa questão da divisão vem de sete a oito anos atrás. Começa com a vinda de um senhor que trabalhava no INCRA. Um dia, fez uma reunião com o pessoal e trouxe essa ideia de loteamento para cá. A partir daí encontrou pessoas que aceitaram. O que mais dói na gente é ver que quem abraçou essa causa nem daqui era. Não fazia parte do território, não nasceu aqui, não sabe contar nossa história e foi quem fez essa confusão todinha.

OP: Como Dona Dijé lidava com essa questão?

Filha: Sempre defendeu o território para todos, sempre pensou o território não dividido. Queria que ele continuasse, como desde o início, um pedaço de terra doado aos negros e que permanecesse assim até o fim. A comunidade foi crescendo e não daria para todo mundo viver aqui, com um pedaço de terra e outros viverem à mercê da miséria.  A pessoa já tem tão pouco e perder esse tão pouco. Ela lutava pelo território livre, para as quebradeiras terem acesso às pindobas. Que nossa cultura fosse valorizada, pois aqui nossa cultura não é respeitada. Tem gente que hoje está no loteamento, que antes vivia nossa cultura. Com a divisão, passaram a negar tudo.  Começaram a dizer que tudo invenção nossa, que a escravidão nunca aconteceu aqui em Monte Alegre. Eu fico me perguntando: a que ponto um pedaço de terra muda a cabeça e a cultura da pessoa?

OP: De que forma a pandemia afetou a comunidade?

Filha: A pandemia nos afetou muito. A escola parou. Tenho bastante medo de ir à cidade. Dias atrás, não havia nenhum caso, era um paraíso, mas aqui próximo, num povoado chamado Montevidéu, morreram dois senhores. É uma coisa que não tá mais só na cidade, já tá migrando para o interior. Percebi, quando a enfermeira fez os testes, que a gente não tá imune.

OP: Quem não conhece a realidade das quebradeiras de coco babaçu costuma associá-la a um cotidiano de miséria, alguém que se tivesse outra coisa para fazer certamente não seria quebradeira de coco. Para vocês o que é ser quebradeira?

Filha: Minha mãe fazia era gostar. Contava que quando era jovem teve uma vida muito difícil.  Quebrava mesmo por não ter uma outra opção de trabalho. Por muitos anos foi professora, mas o salário não dava para sustentar a gente. A quebra do coco é uma forma de tapar alguns buracos. O pai faz a roça, trazia o arroz, feijão, já mãe quebrava coco, vendia na quitanda ou trocava por alimento. Ela gostava dessa profissão, mas eu vejo que as quebradeiras, hoje, é mais por necessidade. O gás aqui é cada dia aumentando. Nem todo mundo tem. A gente, hoje em dia, conta com o programa do gás, através da Prefeitura de Lima Campos, mas as muitos ainda preferem a cultura de cozinhar no carvão. A gente percebe que essa atividade do coco ainda sustenta muitas pessoas. Em muitos lugares o coco e a agricultura familiar são a base de muitas famílias. Ela sempre dizia pra gente que aqui nós éramos ricos. “Pobre eu já fui. Tinha só duas mudas de roupa e trabalhava muito”. Ela tinha que passar o dia todo no mato. Dizia que sofreu muito, mas era feliz. Quando era pequena a mata era alta, hoje não vemos mais. A minha filha não vai ter acesso a isso. Tive, mas ela não terá. Vemos que estão devorando tudo e a devastação não é boa nem para a Terra, nem para o território, nem para o homem.

Cleidiane Ferreira Sousa, filha de Dona Dijé (Foto: Joaquim Cantanhêde)

Neta: Ela falava também sobre as vezes que ia para o mato sem almoçar, quando chegava pensava que ia jantar, mas dormia sem jantar para ter o almoço no outro dia, para dar aos filhos. Quando pequena não sabia o que era progresso. “Progresso era a lamparina, o candeeiro”, ela dizia.

OP: Dona Dijé não foi só quebradeira, foi também uma liderança e não por acaso tomou posse em Brasília- DF. Que postura tinha diante dos desafios sociais que enfrentava?

Filha: Ela abraçou todos os movimentos possíveis. Iniciou sua militância na igreja, foi do sindicato, da Associação em Área de Assentamento no Estado do Maranhão (ASSEMA), que foi quem nos ajudou diante do conflito da terra, foi do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Assumindo tantos movimentos que quando a gente viu, ela quase não ficava em casa. A gente brigava para ela ficar em casa, mas ela dizia “eu tenho que seguir minha vida”. Ela abraçou assim de um jeito que vivia mais no mundo do que por aqui.

Cleidiane Ferreira Sousa e Yeda Letícia de Jesus Ferreira, filha e neta de Dona Dijé (Foto: JoaquimCantanhêde)

OP: E como vocês encaram isso?

Filha: Ela sempre colocou a gente para estudar e foi indo para os movimentos sociais, assumindo cargos. A gente aprendeu muita coisa na marra. Ensinava a gente, mas também deixava a gente aprender por conta. Tinha que aprender. Ela passava três meses fora de casa. E passar três meses sem ver a mãe da gente é muito ruim (emocionada).

Como vocês enxergam o governo Bolsonaro diante das ameaças de sua gestão aos territórios tradicionais?

Para nós, aqui, é muito negativo. Principalmente pra gente que luta pelo território. As leis que ele faz e que aprovam, são sempre contra o nosso território, estão sempre favorecendo os grandes pecuaristas. Aqui a gente luta é contra fazendeiro e o pessoal do loteamento. O que ele tá assinando não nos cabe como o território e cultura negra. A gente não se sente representado nesse governo. Vejo gente dizendo que ele tá dando auxílio e digo: “Gente, ele não tá dando nada. Está apenas cumprindo a lei, porque ele é bonzinho? Não! Se a gente compra um palito de fósforo, paga imposto. Tá devolvendo o que é nosso”. Essas leis que eles aprovam são sempre contra nossos princípios, contra o nosso movimento. O MIQCB ficou sem receber, com as contas bloqueadas. Não teve como pagar o pessoal, tendo que demitir várias pessoas.  Vários movimentos sociais passaram por isso. Eles inventam mais burocracias para empatar a vida dos movimentos sociais. Ele sabe que precisa enfraquecer alguém para poder se fortalecer e enfraquece sempre as minorias: os ribeirinhos, quilombolas, os agricultores familiares. Ele tá lá representando a bancada ruralista. Para ele a gente oferece risco. E ainda falta dois anos. Dá tempo de fazer muita coisa ruim.

OP: Último ato de Dona Dijé, antes de falecer, foi assumir como Conselheira dos Povos e Comunidades Tradicionais em Brasília- DF.  Que simbolismo há, para vocês, nesse último ato público dela?

Filha: Para nós foi muito importante, pois fortaleceu a nossa luta. A gente sabe que ela conseguiu algo que almejou tanto. Essa conquista que teve lá, nesse dia, até hoje a gente colhe frutos. A gente percebeu que os movimentos sociais, pelo menos o MIQBC, não tinha essa linha de trabalho com quilombo e depois disso o MIQBC abraçou essa causa, a luta dos quilombos, das comunidades de terreiro. Todas as vezes que a gente precisa de ajuda os movimentos estão aí para apoiar. Ela preparou todo um espaço, pois sempre dizia, “eu não vou ficar para sempre”. Na semana em que ela morreu, falou: “Minha filha eu não vou ficar para sempre não. A gente veio só passear. Vocês tem que dar continuidade”. Ela já sentia, mas não disse para ninguém que a partida dela estava próxima. Fazia as coisas, as mobilizações e sempre nos colocava no meio. Vejo que era uma forma de estar nos preparando, para que quando partisse não sentíssemos tanto. Ela foi uma militante excepcional.

Por Joaquim Cantanhêde

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Joaquim Cantanhêde
Joaquim Cantanhêdehttp://www.opedreirense.com.br
Jornalista formado pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
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