Comecemos este texto buscando o significado de permissivo. Conforme dicionário[1] online, permissivo é o tolerante com os erros e falhas dos demais, indulgente, sem controle, que é desregrado, sem firmeza. A partir desses sinônimos e com base no que afirmam especialistas em segurança de trânsito no Brasil, a reforma recém aprovada do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é permissiva sim.
O CTB completou 23 anos em setembro de 2020. Foi sancionado pela Lei Nº 9.503 de 23 de setembro de 1997. Quando foi criado, seu objetivo era garantir a mobilidade segura por meio de diretrizes e normas de conduta relacionadas a infrações, fiscalização e educação viária com o envolvimento de todos os usuários do sistema de tráfego do país. É evidente que é preciso que haja mais comprometimento de toda a sociedade no sentido de cumprir o que já está escrito.
Contudo, recentemente o chefe do executivo nacional sancionou o Projeto de Lei nº 3267/2019 que traz alterações no Código de Trânsito Brasileiro, tornando-o mais permissivo. Entre as alterações estão a ampliação de 20 para até 40 pontos do limite para a suspensão da Carteira Nacional de Trânsito (CNH), por um período de 12 meses. Com as mudanças, o motorista será suspenso com 30 pontos, caso cometa uma infração gravíssima; e com 40 pontos, se não cometer nenhuma infração gravíssima nos 12 meses anteriores. A outra mudança diz respeito à validade do documento. Agora pode ser de até 10 anos. Há que se tomar cuidado com esses números. Aumentar a pontuação para possível suspensão da CNH pode ter efeito nocivo. Isso pode aumentar o risco de acidentes e a imprudência dos motoristas, afirma Rafael Calabria, coordenador do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC).
Para Fabio de Cristo, psicólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN, há quem argumente que essa mudança poderá “reduzir o custo Brasil” e “agilizar processos burocráticos”. Embora sejam afirmações desejáveis à população, se configuram como sofismas, pois o aumento da impunidade pode gerar mais custos para o país na saúde, devido ao aumento da insegurança e dos índices de mortes no trânsito.
Aumentar a pontuação pode ser um estímulo à impunidade. Há estudos em todo o mundo demonstrando que os critérios de pontuação induzem os comportamentos. Portanto, flexibilizar as leis de trânsito no Brasil vai na contramão do que vem sendo adotado internacionalmente. Mas, essa tem sido a retórica dos últimos meses em relação a temáticas importantes no país, como por exemplo, a legislação ambiental, excludentes de ilicitude, demarcação das terras indígenas, corte de investimentos em pesquisa, entre outras.
Para os especialistas do IDEC, esta proposta de flexibilizar o CTB, é catastrófica. Está longe de ser uma reforma, com um debate amplo. É mais uma destas propostas de mudanças de políticas visionárias, hoje em voga no Brasil, feitas sem base alguma. Sem justificativas técnicas, calcadas em desejos pessoais. Nessa lógica, muito se fala de que temos em nosso país uma “indústria de multas”. Mas é preciso que haja avaliações objetivas que atestem esta afirmativa. A realidade brasileira é marcada pela insuficiência da fiscalização, os órgãos de trânsito não dispõem de pessoal e radares na quantidade necessária. Conforme técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET), para cada multa aplicada, outras dez deixam de ser aplicadas por ausência de cobertura. A CET também comprova que apenas 5% dos motoristas são responsáveis por 60% das multas aplicadas. É esta minoria barulhenta a que mais fala em “indústria das multas”. É curioso, porque setores de nossa sociedade pedem mais punitivismo em muitas áreas, mas querem a impunidade no trânsito.
Outra polêmica bastante conhecida foi em relação à cadeirinha. Na proposta original do Executivo, o presidente Bolsonaro (sem partido) propôs que a punição pela não utilização da cadeirinha fosse somente uma advertência escrita. O texto do governo ainda sugeriu que a criança tivesse até 7 anos e meio para poder utilizar o equipamento. Porém, com a nova regra do CTB a utilização da cadeirinha para crianças será obrigatória. Segundo o texto do parlamento, a cadeirinha deverá ser adequada ao peso e à altura da criança. O equipamento será obrigatório para crianças de até 10 anos com menos de 1,45 metro de altura. O desrespeito à norma será considerado uma infração gravíssima. Neste caso, uma vitória da sociedade, pois suscitou um pedagógico debate, tratando da importância do uso destas cadeirinhas, e a importância de o Estado ter condições de fiscalizar e punir quem por ventura não as usar. Proteger a vida é uma obrigação do Estado, então não tem cabimento abrandar a legislação no que se refere às penalidades.
Quanto à renovação da habilitação, passa a acontecer de dez em dez anos e não de cinco em cinco, conforme o modelo atual. Porém há um escalonamento, pois a alteração só é válida até os 50 anos — na faixa entre 50 e 70 anos, a renovação é realizada de cinco em cinco anos e, dos 70 anos adiante, de três em três anos. Para Fabio de Cristo, psicólogo e professor na UFRN, Coordenador do Portal de Psicologia do Trânsito (Portal Psitran) e tem 3 livros publicados na área, essa periodicidade da renovação dos exames para a habilitação é potencialmente negativa. Para o especialista, o protagonismo da Psicologia do Trânsito ocorre quando colabora com parlamentares e outras entidades para manter, resgatar e ampliar a defesa dos valores que são importantes para a cultura de segurança em nosso país. Desse modo, estes valores devem se expressar nos projetos de atualização do CTB.
Alguns trechos (artigos) do texto original proposto em 2019, foram vetados. O presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) foi contra a obrigatoriedade de exames de aptidão físicos e mentais para motoristas serem obrigatoriamente realizados por médicos e psicólogos especializados em trânsito, embora isso não conste. Também vetou o prazo limite de três anos para que profissionais que exercem tais funções hoje obtenham a titulação necessária. Porém os exames serão feitos em clínicas credenciadas pelo Detran.
Frente ao exposto, alguns aspectos devem ser melhor elucidados. Primeiramente, de acordo com o relatório “Retrato da Segurança Viária no Brasil”, elaborado pela Ambev[2] em 2017, juntamente com a FALCONI Consultores de Resultado e com o Observatório Nacional de Segurança Viária, logo em seu primeiro ano, o CTB ajudou a reduzir as mortes no trânsito em 13%. É bem verdade que as mortes no trânsito ao invés de diminuírem durante a vigência dos primeiros 18 anos do código, aumentaram. Mas, é importante ressaltar que a frota de veículos durante esse período aumentou em proporção bem maior, cerca de 275%. Percebe-se que algo precisa ser feito ou o que já existe precisa ser melhorado e aprimorado. Respeitar os limites de velocidade, não associar o consumo de bebidas alcoólicas à direção de veículos, não se distrair com o celular ao volante, usar capacete, cinto de segurança e cadeirinha para crianças são alguns dos fatores que podem garantir uma segurança viária.
A legislação brasileira de trânsito foi considerada, por um relatório lançado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um exemplo positivo entre os dez países mais populosos do mundo. O estudo revela que o Brasil sai na frente das demais nações em quatro dos cinco quesitos avaliados: bebida e direção; restrições para crianças e uso de capacetes e de cinto de segurança.
E assim, caro leitor, ficam os questionamentos: Flexibilizar para quê? A quem interessa essa flexibilização? À sociedade ou a pequenos grupos que se utilizam de lobby[3] para auferir privilégios junto ao governo?
A seguir o quadro resumo expõe as principais mudanças no CTB, sancionada pelo presidente da república recentemente.
PRINCIPAIS MUDANÇAS NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
Validade da CNH
O texto amplia o prazo de validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH): 10 anos para quem tem menos de 50 anos de idade, 5 anos para quem tiver entre 50 e 70 anos e 3 anos para pessoas acima de 70 anos. Hoje, a regra geral é de 5 anos de validade. Essa extensão só vale para as CNHs que forem emitidas com a nova data de validade.
Exames para habilitação
O candidato à habilitação deverá submeter-se a exames realizados pelo órgão executivo de trânsito. Os exames de aptidão física e mental e a avaliação psicológica deverão ser realizados por médicos e psicólogos peritos examinadores com titulação de especialista em medicina do tráfego e em psicologia do trânsito.
Pontos na carteira
O projeto aumenta o limite de pontos para suspender a CNH. Condutores profissionais terão até 40 pontos. Para os demais, depende da quantidade de infrações gravíssimas cometidas nos últimos 12 meses.
Multa
Torna todas as multas leves e médias puníveis apenas com advertência, caso o condutor não seja reincidente na mesma infração nos últimos 12 meses. O texto também determina prazo máximo de 180 dias para a aplicação da penalidade e expedição de notificação de multa ao infrator.
Cadeirinha
O uso obrigatório das cadeirinhas infantis deixa de ser norma infralegal e passa a fazer parte do texto do CTB, medida que afasta definitivamente as dúvidas sobre sua obrigatoriedade. A cadeirinha será obrigatória para crianças com idade inferior a 10 anos que não tenham atingido 1,45 metro de altura. O texto também faz referência ao peso da criança.
Conselho Nacional de Trânsito
Fica alterada a composição do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), de forma que passe a ser composto exclusivamente por ministros de Estado. Além disso, esse colegiado deixa de ser instância recursal de multas, e as minutas de suas resoluções passam a ser submetidas a consulta pública prévia.
Bicicletas
O texto cria uma infração específica para a parada sobre ciclovia ou ciclofaixa e aumenta a pena da infração por não redução da velocidade ao ultrapassar ciclistas. O Contran especificará as bicicletas motorizadas e equiparados não sujeitos ao registro, ao licenciamento e ao emplacamento para circulação nas vias.
Notificação eletrônica
O condutor poderá optar pelo sistema de notificação eletrônica de multas. Nesse caso, se ele não apresentar defesa prévia nem recurso, reconhecendo o cometimento da infração, poderá ganhar desconto de 40% no valor da multa.
Farol baixo
Altera a chamada “lei do farol baixo”, para que a previsão somente se aplique aos casos de rodovias de pista simples. Os veículos novos, tanto nacionais quanto importados, deverão ser fabricados com luzes de rodagem diurna.
Teste de direção
Passa a exigir titulação específica dos peritos examinadores, ao mesmo tempo em que aumenta o rigor e a fiscalização sobre eles. Examinadores deverão ser médicos e psicólogos com titulação de especialista em medicina do tráfego e em psicologia do trânsito.
“Corredores” de moto
O projeto cria regras para o uso dos chamados “corredores” de motociclistas. A passagem entre as faixas das vias entre veículos só será admitida quando o fluxo estiver parado ou lento. Se houver mais de duas faixas de circulação, a passagem somente será admitida no espaço entre as duas faixas mais à esquerda. Além disso, a passagem nos corredores terá que ser “em velocidade compatível com a segurança de pedestres, ciclistas e demais veículos”.
Garupa de motocicleta
Aumenta de 7 para 10 anos a idade mínima necessária para que as crianças possam ser transportadas na garupa das motocicletas. Além disso, a criança deve ter condições da cuidar da própria segurança. Quanto a passageiros maiores, devem utilizar os capacetes de forma adequada, com viseira de segurança de acordo com a regulamentação do Contran.
Renovação da CNH
Os condutores das categorias C, D e E deverão comprovar resultado negativo em exame toxicológico para obter ou renovar a carteira.
Transferência de título
Cria nova sistemática para a venda de veículos, na qual o comprador terá 30 dias para registrar o veículo em seu nome. Se essa etapa não for cumprida, findo esse prazo, o vendedor terá mais 60 dias para comunicar a venda junto ao Detran. Quem não cumprir esse prazo será penalizado com infração leve.
Documentação
O texto veda o licenciamento de veículos que não tenham atendido a campanhas de recall pendentes há mais de um ano. E dispensa documentos ou autorizações adicionais para a regularização de veículos blindados além dos já previstos no CTB.
Registro Positivo
Será criado o Registro Nacional Positivo de Condutores (RNPC), para cadastrar motoristas que não cometeram infração de trânsito nos últimos 12 meses. A abertura de cadastro requer autorização prévia e expressa do potencial cadastrado. O RNPC poderá ser utilizado para conceder benefícios fiscais ou tarifários aos condutores cadastrados, na forma da legislação específica de cada ente da federação.
Direito de dirigir
O texto ainda dá aos órgãos e entidades com competência para aplicação de multas, das três esferas de governo, a função de aplicar também a penalidade de suspensão do direito de dirigir. E permite aos policiais legislativos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal atuarem na fiscalização de trânsito no entorno do Congresso. Para tal, eles deverão receber treinamento específico.
Atualizações da lei
Será criado o Registro Nacional Positivo de Condutores (RNPC), para cadastrar motoristas que não cometeram infração de trânsito nos últimos 12 meses. A abertura de cadastro requer autorização prévia e expressa do potencial cadastrado. O RNPC poderá ser utilizado para conceder benefícios fiscais ou tarifários aos condutores cadastrados, na forma da legislação específica de cada ente da federação.
Fonte: Agência Senado
Por José Edson da Silva Barrinha, licenciado em Geografia, Especialista e Mestre em Geografia pelo PPGGEO/UFPI. Coautor do livro Organização Espacial de Teresina. Professor efetivo de Geografia do Instituto Federal do Maranhão (IFMA) – Campus Pedreiras.
Fontes consultadas:
AMBEV E FALCON. Retrato da Segurança viária 2017. (book_ambev.indd).
BRASIL, R. F. do. Lei Nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503Compilado.htm.
_______, R. F. do. Lei Nº 14.071, de 13 de outubro de 2020. Altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), para modificar a composição do Conselho Nacional de Trânsito e ampliar o prazo de validade das habilitações; e dá outras providências.
_______. R. F. do. Agência Senado. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/18/especialistas-fazem-reparos-a-reforma-no-codigo-de-transito-brasileiro.
[1] www.dicio.com.br
[2] É uma empresa brasileira dedicada à produção de bebidas, entre as quais cervejas, refrigerantes, energéticos, sucos, chás e água. Foi fundada em 1 de julho de 1999. É a 14ª maior empresa do país em receita líquida e controla cerca de 68% do mercado brasileiro de cerveja.
[3] Atividade de pressão de um grupo organizado (de interesse, de propaganda etc.) sobre políticos e poderes públicos, que visa exercer sobre estes qualquer influência ao seu alcance, mas sem buscar o controle formal do governo; campanha, lobismo.