“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”
Ditado iorubá
Não lembro o ano exato em que conheci Emicida através de sua musicalidade, tipo queijo e goiabada, num misto de revolta e calmaria, tal qual o mar lá da ilha do amor. Eu, desconfiado da vida e de mim, numa fase incerta dela, topei com “Então toma” nas esquinas do YouTube. “Deus me fez maior, ele me fez melhor (Melhor!). Me deu uma missão de coração, neguim. Falar o que vejo, o que eu vivo, o que eu sinto e os que são menos que isso, vão ter que falar de mim”. Me senti rei e agora, aos 31 anos de idade, a escuto sempre que a gravidade se impõe, querendo converter coroa em coleira.
Para as bandas de 2015 me apaixonei por uma dona que não morava em Teresina (PI). Naquela altura, foi ouvindo o artista cantar, “juro que saio daqui no finalzinho do dia. Chego cedo, com a promessa de reviver a poesia. De quando diariamente a gente se via”, que apaziguava a saudade típica de um caso espreitado pela maldita geografia.
Se for contar minha relação com a obra de Leandro Roque de Oliveira (1985), natural de São Paulo, vou perder a noção do tempo e pegar uma estrada diferente do combinado. Então vamos ao que interessa.
De lá pra cá muita coisa mudou, na minha vida e na vida do Emicida. Cria da periferia, dotado de poesia, vocação para desenhista e também produtor musical, que no fim de 2019 fez o que não pôde fazer quando “curumim”: ecoar sua voz no grandioso Theatro Municipal de São Paulo. É que no Brasil ser negro soa como “azar”, construir e não poder entrar, mas em “AmarElo – é tudo para ontem”, é o preto que predomina na plateia e no palco, anunciando, à força, novos tempos não acabados, mas em construção. Ainda estamos na raiz.
No documentário, estreado na Netflix no dia 08 de dezembro, Emicida é narrador de sua história e de outras tantas, de gente cuja negritude se acha repleta de simbolismo, suor, sangue e movimento. Mostra, com aguçada intencionalidade, que a história do músico é também o enredo de uma parcela social, composta por negras e negros, sem a qual o Brasil como se conhece não existiria, mas a poesia que perpassa toda a narrativa audiovisual não romantiza a história. Ela também traz versos de dor.
O ápice foi ver Emicida no centro do palco, num ato de extrema subversão, um convite para tantas outras subversões e ocupações. Me arrepiei, confesso!
“A felicidade do negro é quase”
Emicida
Entre uma performance e outra, no palco, a história do artista passeia por tantas outras, num misto de imagens antigas e atuais, com uma estética analógica, como no caso das cenas em que aparece cuidado da horta. É latente que tudo fora devidamente pensado e editado. Nada está fora do lugar ou desconexo. Por isso é importante dizer que o doc. foi dirigido por Fred Ouro Preto, produzido por Evandro Fíot, irmão de Emicida, e roteirizado por Toni C.
A obra audiovisual se ocupa em fazer um resgate histórico sobre o Brasil e a cidade de São Paulo, tendo como plano de fundo a escravidão. Questiona se de fato houve liberdade plena, pois com a abolição os negros foram abandonados, relegados ao esquecimento naquele presente e na história (branca) que lhes negaria um lugar ao sol, que só brilha para os negros, às custas de suor e luta, muita luta.
“A natureza tem suas leis, o homem é que tem moral e o homem, com sua moral, vai afastando o próprio homem”
Mateus Aleluia
Ao falar do homem enquanto ser coletivo, feito para a convivência, une mundos tidos como opostos: a palavra, átrio que abarca o cantor Mateus Aleluia, com suas vivências angolanas, dentre tantas perpassadas pelas religiões afro-brasileiras, com a serenidade do Pastor Henrique Vieira, que diz: “Esse eu que essa sociedade produz, falsamente empoderado, mas profundamente solitário”. Em suma: é na existência do outro que percebo a minha. E é exatamente isso que um país, regido por uma elite branca, tenta anular.
O samba, suas origens e seus nomes ocupam lugares de destaque na narrativa. É compreendido como fundamento do Brasil. Pinxiguinha, Donga e os Oito Batutas são lembrados ao levarem o samba para a cidade luz, a saber Paris. No que tange a proximidade entre samba e rap, o documentário lembra figuras importantes dessa fusão: “Athaliba e a Firma, Rappin Hood, Marcelo D2, Quinto Andar, Racionais MC’s”, cita.
“O samba é o Brasil que deu certo, e não há vitória possível para esse país, distante do samba”
Emicida
A dor, palavra difícil descrever e que marca a trajetória de tantos negros no Brasil também se manifestou ante a penumbra dos anos de chumbo. O racismo também foi uma marca da ditadura militar de 64. “Para que hoje a gente esteja neste lugar, que foi negado aos nossos ancestrais, muitas pessoas suaram e sangraram pelo caminho. Algumas pessoas no auge da ditadura militar tiveram a coragem de se levantar contra o Estado Brasileiro e seu racismo assassino, e dizer que aquele país precisava reconhecer o protagonismo das pessoas e pele escura na sociedade brasileira. Hoje a gente tem algumas pessoas aqui que estavam na escadaria do Theatro Municipal em 1978, lutando contra o racismo”, lembra Emicida. As cenas seguintes são de uma força arrebatadora. Na plateia se levantam ativistas Movimento Negro Unificado (MNU), entre eles Regina Lucia Santos e Milton Barbosa, todos com punhos erguidos sob ás palmas da plateia.
“AmarElo – é tudo para ontem” é um resgate do protagonismo de inúmeras mulheres negras, tal qual a pensadora Lélia Gonzalez e Leci Brandão, que se tornou a primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola de samba carioca Magueira. Das memórias resgatadas, o vanguardismos de Ruth de Souza é arrebatador. Nada mais, nada menos que a primeira mulher negra protagonista de novela da TV brasileira, como o documentário faz questão de lembrar, “primeira-dama negra do cinema”.
“Para ser uma efetiva democracia racial, este país tem que ser efetivamente uma democracia”.
Lélia Gozales
Os spoilers são muitos, mas nada que chegue perto de traduzir a percepção derivada do tempo dedicado a assistir “AmarElo – é tudo para ontem”. O recebi como uma obra que versa sobre a emancipação do sonho e do sonhador. Gente ocupando espaços negados que no fim das contas, dizem mais sobre eles do que seus opressores. É sobre um lado da história colocado sob o tapete, mas quem os colocou se esqueceu que a história grita, de dor e de esperança.
“AmarElo – é tudo para ontem” é sobre meninice, juventude, liberdade, identidades em coalisão com uma cidade formal, petrificada, seguindo sua sina. Quebrar essa lógica é a beleza e o foco da mensagem que passa.
Sem mais delongas, deixo-lhes uma definição do próprio Emicida sobre o documentário, um trecho de uma entrevista concedida por ele ao jornal El País:
“O filme se debruça em cima de uma parte da história brasileira dos últimos 100 anos, mas que foi invisibilizada sobretudo para os brasileiros. Muitos de nós conheciam as figuras, discos, pessoas, e estou apresentando eles para a minha geração para dizer que, sem a contribuição desses homens e mulheres, não existiria a figura que tantos admiram que é o Emicida”.